Sitio
O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
_ mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: - Pai!
acho que um bicho me mordeu! assim
que a bala varou sua cabeça?
De: ROQUETTE-PINTO, Claudia. Margem de Manobra. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2005.
O menino peregrino
ResponderExcluirNão conhece o desatino
Seu destino
Debaixo do telhado de zinco
Um labirinto
Cheio de reentrâncias
Casa, prazeres, muro
Às vezes um porto seguro
Às vezes outros saberes
Outros seres
Som e batucada
Até a alta madrugada
No meio o zumbido ardiloso
Um líquido mal-cheiroso
Destempero da vida
E uma bala perdida.
Lindo, lindo. Não a conhecia. Obrigada pelo poema.
ResponderExcluirmaravilha, poeta!
ResponderExcluirque tocante, que jogo de palavras e imagens!
me ficou na cabeça a letra de "o herói", do caetano, e reminiscências dos romances da patrícia melo.
pois é. "sempre quis tudo o que desmente esse país encardido".
beijo grande!
Prezado Antonio Cícero,
ResponderExcluirAssisti nesse instante um jornal na televisão narrar um episódio semelhante ocorrido ontem na Tijuca.
Belo poema; pobre Rio de Janeiro.
Um abraço,
João Renato.
Reverso
ResponderExcluirA poesia é pouca
para resgatar o desespero.
Pomar de metáforas,
canteiro de músicas,
mistérios e mistificações
maduramente inúteis,
enquanto a vida ali explode:
áspera, acidental, rombuda.
Nesta hora,
há um homem varado com sua agonia:
um homem com seu grito,
um homem com seus ossos,
um homem ferido
com seu suor.
Sim, meu poema é raiva,
raiva de ser só palavras.
Quando poderia ser
músculos ou porradas,
pedra na praça, espingarda,
tiro na cabeça da injustiça.
Meu verso, porém, é dor
Dor de ser somente verso.
Do livro Fala, Favela - de Adriano espínola
PS: Caro Antônio, em visita ao RJ, ano passado, por ocasião de um seminário sobre poesia na UFF, tive o prazer de ouvir esse poema da Cláudia recitado pela profa. Iumna da USP, que dele fez uma análise surpreendente. Na mesma linha, sensível à essa mesma tônica social, deixo aqui registrado esse poema do Adriano, meu atual poeta de cabeceira, cuja obra me toca profundamente. Abraços.
Leonardo/Goiânia
observador,
ResponderExcluirmaravilhosamente incômodo.
aliás é a marca da obra dela.
transfigurar palavras a ponto de elas alcançarem além da natureza que lhes foi fadada no dicionário.
"Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas."
(Alma Corsária - Claudia Roquette-Pinto)
obrigada pela presença de Claudia aqui.
um abraço,