26.3.08

Rosa Maria Martelo: Proteu e a forma

Eis a recensão do meu livro Finalidades sem fim, feita pela brilhante ensaísta e professora da Universidade do Porto, Rosa Maria Martelo, e publicada na revista Relâmpago:


Proteu e a forma

Antonio Cícero, Finalidades sem Fim, Quasi Edições, 2007
Rosa Maria Martelo

Em Finalidades sem Fim, Antonio Cicero reuniu um conjunto de nove ensaios, escritos entre 1998 e 2003. Um desses ensaios é inédito, os restantes tinham sido objecto de publicação dispersa, em revistas ou obras colectivas. Conforme é dito na “Introdução”, alguns dos estudos assim coligidos sofreram modificações significativas aquando da preparação deste volume. E talvez esse seja um dos motivos pelos quais, ao ler estes ensaios, não é difícil captar um certo “ar de família” entre todos eles, embora esse “ar de família” tenha certamente menos a ver com o momento da organização de Finalidades sem Fim do que com o facto de, ao longo deste livro, se desenhar uma reflexão conduzida por um conjunto de questões articuladas de forma continuada e pessoal, o que nos permite acompanhar um pensamento em processo.

Neste livro, a elaborada formação filosófica do poeta Antonio Cicero é predominantemente orientada para a compreensão da poesia e, num sentido mais lato, da criação artística. Como o Autor esclarece no texto de abertura, “sete ensaios tratam de poesia; um, de música; outro, de pintura” (9). Porém, muitas das questões tratadas são comuns a diferentes campos da arte. Ainda na “Introdução”, Antonio Cicero lembra um dito de Goethe – “Poeta e artista: aquele é gênero, este é espécie” (9) – para acrescentar: “Aceitemos, ao menos provisoriamente, essa qualificação, de modo que me baste, doravante, dizer «poeta» ou «poesia» para significar artista e arte”. E, de facto, é muitas vezes no entrecruzar de poesia e arte (reunidas num sentido amplo de poiesis) que se desenvolve o pensamento elaborado nestes nove ensaios.

Antonio Cicero comentou numa entrevista que, muito mais do que estar preocupado com conhecer um pouco de tudo aquilo que se vai publicando, lhe interessavam os seus livros, acrescentando que muitos deles eram de autores clássicos, lidos na língua original. É uma afirmação que logo associo a um comentário de Eduardo Lourenço, que me lembro de ter ouvido referir, também numa entrevista, creio eu, o quanto tinha sofrido a olhar para a incomensurável extensão das paredes das bibliotecas sabendo que nunca poderia ler tudo quanto gostaria. Isto – explicava depois – até ter compreendido que um leitor apenas precisa de ler os seus livros. Saber quais são os nossos livros demora um certo tempo e passa pelo repetido desacerto de muitos desencontros, mas é verdade que – a partir de uma certa altura, pelo menos – é assim: temos os nossos livros, com os quais nos habituámos a pensar. Ora quando comecei a ler Finalidades sem Fim, não foram precisas muitas páginas para eu me lembrar de um dos meus livros, que é um pequeno ensaio de Jean-Luc Nancy, onde encontrei há alguns anos uma frase que, subitamente, condensava e reapresentava de forma límpida uma série de questões que para mim eram, e são, importantes: “A poesia” – escrevia Nancy – “não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência, essa impropriedadde substancial, aquilo que faz propriamente a poesia”. No essencial, trata-se de uma afirmação que exclui a possibilidade de uma definição essencialista da poesia, mas ao mesmo tempo a define, embora através do movimento de auto-transformação criadora pelo qual a poesia se lança num permanente devir outra coisa que não o que nela possamos reconhecer, circunstancialmente, como poético.

À medida que ia lendo o primeiro ensaio de Finalidades sem Fim, “Poesia e paisagens urbanas”, que coloca a poesia sob o signo do desenraizamento, fui reconhecendo esta questão. E ela assume no livro um lugar tão significativo que, não por acaso, o fragmento do primeiro ensaio onde ela surge resumida reaparece, parcialmente, na contracapa do livro:

"(...) o verdadeiro poeta faz questão de ser fiel à poesia propriamente dita, mas não necessariamente às aparências acidentais que ela terá assumido e que a contingência histórica terá posto à disposição dele. (...) A poesia deve chegar a ser o que é. É para ser fiel à poesia em si que o verdadeiro poeta se insubordina não somente contra a poesia convencional, mas contra o olhar ou a apreensão convencional da poesia. (...) Contra essa concepção domesticada da poesia, o verdadeiro poeta se impõe uma tarefa dupla: por um lado, revelar a poesia em estado essencial e selvagem e, por outro, desmantelar as convenções que a elidem ou domesticam. (15-16)"

Como Antonio Cicero lembra a seguir, foi na passagem do séc. XIX para o séc. XX, com a emergência das vanguardas, que se radicalizou este entendimento, pelo qual a poesia se desidentifica das formas que simultaneamente permitem o seu reconhecimento. Entender que, para a poesia chegar a ser o que é, se torna necessário libertá-la de todo o convencionalismo, quando simultaneamente sabemos que essa libertação institui outros convencionalismos, que geram novos actos de libertação, e entender que nesse constante devir se inscreve a fidelidade à poesia, não estará muito longe da valorização, por parte de Jean-Luc Nancy, de uma não-coincidência da poesia consigo mesma, de uma impropriedade substancial, como sendo o ponto onde mais devemos esperar compreender o que a poesia é. E simplificando, mas num breve texto como este não posso senão simplificar, creio poder dizer que Finalidades sem Fim roda em torno desta questão (alargando-a ao campo das artes plásticas e da música), abrindo-a e reabrindo-a a partir de vários ângulos.

Neste primeiro ensaio, a questão do desenraizamento (do desenraizamento urbano, mas também do desenraizamento em sentido lato) conduz à revisitação das vanguardas e depois à ideia de ruptura que normalmente lhes vem associada, para deixar claro que a ruptura é “um subproduto” (18) de um outro movimento, esse sim, essencial: a relativização das formas antigas (19), a demonstração do carácter acidental das formas (18). Antonio Cicero dedica algum tempo a demonstrar o carácter eminentemente conceptual da experiência das vanguardas, deixando claro que, nelas, esta dimensão prevalece sobre a dimensão estética e que a grande herança deixada pelas vanguardas históricas foi a do reconhecimento de não podermos dizer “ex ante o que vai contar como poesia e o que não” (23). É, no dizer de Antonio Cicero, o levar “às últimas consequências as possibilidades de desenraizamento e urbanidade presentes na própria escrita alfabética”, da qual teria partido a progressiva consciência da contingência das formas. (24).

Assim, o ensaio seguinte é dedicado à poesia de Waly Salomão, que Antonio Cicero procura subtrair ao peso dos clichés que pesam sobre a imagem pública do autor, passando o terceiro ensaio para o domínio da música – “O tropicalismo e a MPB”. O modo como é lida a MPB, isto é, a valorização levada a cabo por Antonio Cicero do que considera ser “a elucidação conceitual empreendida pelo tropicalismo”, que “mostra que a MPB não tem limites preestabelecidos, pois não tem essência” (60), aproxima a sua análise do tropicalismo do que anteriormente descrevera como o movimento essencial das vanguardas históricas. Analogamente, também neste caso se trata, em seu entender, de destruir “as bases sobre as quais se consideravam como essencial ou privilegiadamente brasileiros determinados géneros ou formas, em detrimento de outros” (60), abrindo tanto o espaço da tradição como o da contemporaneidade. Estaríamos, assim, num espaço de consumação da modernidade, agora observado no plano musical. Antes, no primeiro ensaio que referi, Antonio Cicero tinha afirmado que o grande feito das vanguardas fora o seguinte: “Aprendemos, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade – em princípio – de que a poesia empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes” (22). A modernidade da MPB estaria, naturalmente, na assimilação deste aprendizado no plano musical.

No contexto deste tipo de reflexões, o leitor não se surpreende com o título dos dois ensaios seguintes: “Drummond e a modernidade” e “Limites do moderno, ou de Mário de Andrade?”. Um aspecto muito interessante do ensaio dedicado a Carlos Drummond de Andrade passa pela recuperação da leitura que vinha sendo feita do papel das vanguardas, lembrando Antonio Cicero que “[a]ntes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço. Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia” (64).

A questão da contingência das formas é igualmente observada a partir do estudo do modernismo na pintura. No ensaio “A época da crítica: Kant, Greenberg e o modernismo”, Antonio Cicero demonstra que o desejo de uma pintura pura permite descobrir “o carácter acidental da própria pintura em relação à arte” (175). Esta questão acabará por estar presente ao longo de todo o livro, contribuindo, também ela, para que Finalidades sem Fim se leia mais como um longo ensaio em várias partes do que como um conjunto diversificado de ensaios, mesmo se os textos deste livro têm temas muito diferentes entre si. De certa maneira, é ainda esta questão, captada num momento absolutamente matricial, aquela que vai orientar toda a reflexão conduzida no último ensaio do livro, “Epos e Muthos em Homero”. Ao procurar distinguir rigorosamente estas duas noções, a partir de várias ocorrências nos poemas homéricos, e avaliando todas as implicações de se ver na primeira o discurso e na segunda o tema (236), o dizer e o dito (mas em modulações extremamente criteriosas que esta simples designação não pode senão trair), Antonio Cicero conclui:

"Por fim, deve-se sublinhar ainda outro efeito surpreendente da afirmação por Homero do caráter épico dos seus poemas. É que, ao reiterar manifestamente a própria canção divina das Musas, isto é, a canção-tipo, o poeta se libera da obrigação de imitar qualquer instância prévia, que dizer, qualquer variante particular da mesma canção entre os humanos. Se fosse obrigado a imitar um modelo humano, não estaria à altura nem mesmo desse modelo. É por – e para – beber da fonte das Musas que o poeta se sente, per impossibile, obrigado a realizar algo que, jamais tendo sido feito antes, encontra-se à altura daquilo que de melhor fizeram os poetas que o antecederam ou que lhe são contemporâneos. Da fonte da tradição – fons et origo – jorra a invenção." (246-7)

A distinção entre epos e muthos fora já o ponto de partida para o ensaio anterior, “Proteu”, onde Antonio Cicero, depois de analisar a narrativa feita por Menelau a Telémaco, na Odisseia, do seu encontro com Proteu, e depois de assinalar neste velho deus do mar e sua filha uma tensão entre o fluxo (o movimento) e a forma (186), passa pelas difíceis relações de Platão com os poetas, e por Anaximandro, analisando pormenorizadamente as suas posições. Destaco a conclusão:

"Toda a forma consiste num momento estancado e preservado do movimento do qual provém. Também o poema é uma forma, mas uma forma que porta em si a marca-d’água do movimento. Ele reflete no seu próprio ser o movimento originário. O poema é a forma que incorpora em si o seu oposto, isto é, o ápeiron, que é a poesia. Cada vez que o lemos, ele se torna diferente não só do que era na leitura anterior, mas de si próprio no exato instante em que o estamos a ler: Proteu nos braços de Eidotéia." (204)

Talvez não sejam precisos mais exemplos para deixar claro que há uma problemática única a atravessar o livro Finalidades sem Fim, fazendo dos vários ensaios diferentes tentativas de responder a interrogações afins ou complementares. Em “Poesia e Filosofia”, questões como a da sobrecodificação do poema, “dotado de um[n] altíssimo grau de escritura” (93) que Antonio Cicero associa à indissociabilidade entre significado e significante (96) e à intraduzibilidade, conduzem-nos novamente a uma noção afim da de epos: “os poemas são mais escritos porque são mais fixos que os não-poemas”, o que eles dizem não se separa do modo como dizem, do que são enquanto ocorrência de discurso (cf. 106). É, de resto, esta consideração do poema que faz dele “um objeto artificial desprovido, portanto, de fim, isto é, de causa final” (111).

Antonio Cicero recorda a explicação kantiana de que “a beleza se encontra na finalidade sem fim”, para poder demonstrar que, na sua hiper-codificação e despragmatização, o poema suscita uma apreensão estética, isto é: “livramo-nos do cálculo utilitário ou moral justamente para deixar que a obra, resplandecente provoque em nós o jogo livre das faculdades cognitivas” (119). Proteu nos braços de Eidotéia, a forma que contém em si a marca d’água do movimento, a irrupção do informe e a expectativa da forma. Sobre esta margem, a poesia e as outras artes constroem uma consciência crítica e estética que as abre ao devir. E é também sobre essa mesma margem que Antonio Cicero desenvolve uma muito estimulante reflexão sobre a poesia e as artes.



De: MARTELO, Rosa Maria. "Proteu e a forma". Recensão de 'Finalidades sem fim', de Antonio Cicero. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.223-226.

5 comentários:

  1. Poesia - forja rica de metais lavrados.

    Miríade de versos. Simplicidade. Exatidão.

    Encantamento e magnitude. Criação.

    Sendo poeta, entre a beleza e a palavra, sou quem desnuda.

    Sinto. Expresso. Desejo. Almejo.

    Sou eu quem luta. Quem comemora.

    Quem pende a fronte após a queda.

    Sou quem mistura o ócio e a virtude,

    a guerra e a ilusão, a água e a areia.

    A poesia, não. A poesia é crueldade, egoísmo.

    É coisa fria, usurpadora, sem compaixão.

    É a mulher entregue ao frio,

    enquanto o fogo do poeta vira gelo em sua mão.

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  2. Antonio,

    O livro é realmente fantástico, e reler esses ensaios ou críticas a eles sempre me leva a uma série de reflexões quase interminável. Uma, em especial, me vem neste momento.

    Compreendo o papel das vanguardas no sentido de expandir o leque de possibilidades, mostrar-nos o caráter contingente das soluções particulares, a ausência de uma essência do poema. Por outro, não seria importante o movimento de depuração das formas contingentes?

    A invenção do soneto, por exemplo, excluindo de suas possibilidades milhares de formas poéticas não foi tão ou mais importante quanto as vanguardas que o relativizaram?

    Entendo que a exclusão, em arte, abre tantas possibilidades quanto a inclusão. Ao determinar um subconjunto da arte, estamos na verdade criando uma nova gama de possibilidades. Por exemplo, ao excluir da poesia a entoação, quando a tornamos escrita, criamos uma nova forma de arte, levando o foco da apreciação estética para elementos antes irrevelantes ou ignorados.

    As formas específicas da arte, sejam mais gerais (como a poesia escrita) ou mais particulares (como o soneto), concentram a atenção estética em determinados elementos - na verdade transformam a disposição desses elementos em criação artística.

    É claro que não proponho uma volta à pré-modernidade, à fetichização. Mas será que não falta hoje uma maior valorização e discussão das escolhas de exclusão que necessariamente todo poeta ou artista faz?

    um abraço,
    lucas nicolato

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  3. Acho que justamente o fato de que tudo seja possível, de que não haja forma a priori privilegiada, obriga-nos a considerar cada poema como algo sui generis. Assim, ao ler um poema, deve-se tentar entender o sentido de cada uma das escolhas particulares que o constituíram. Num poema experimental, essa atitude é evidentemente necessária; mas é também necessária em relação às formas tradicionais. O próprio fato de que um poema seja um soneto, por exemplo, já é mais significativo hoje do que na época em que o soneto era a forma mais comum: e, além disso, o significado desse fato varia de poeta para poeta e, às vezes, de poema para poema. A boa crítica é a que leva isso em conta.

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  4. Ah,poeta...a poesia desenraizada...é lá...

    É lá...

    Lá onde a poesia se pronuncia
    Mágica pulsão que canta,
    É preciso dizer seu nome alto,
    Mato,calcário,flor de planta,
    Lá onde mote sara a mialgia
    Minimalista artista da escrita,
    É preciso viver seu pesadelo,
    Pêlo,pandeiro,marguerita
    É lá onde vovô Geppetto aluou,
    Num boneco que é gente e fala,
    Que é preciso mala pra ver a rima,
    Clima,botina ,boca que embala...


    Nina Araújo

    Beijos cariocas,poeta querido!!

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  5. Muito obrigado, Nina, pelo poema e pela simpatia.

    Beijos cariocas para você também.
    Antonio Cicero

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