Em 1993, Waly Salomão e eu trouxemos o poeta catalão Joan Brossa ao Brasil, para participar de uma mesa redonda com o poeta norte-americano John Ashbery e o brasileiro João Cabral de Melo Neto. Na semana passada, Victor da Rosa, mestrando em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, pediu-me que lhe enviasse, para publicar no suplemento cultural do jornal Diário Catarinense, um breve depoimento pessoal sobre meu contato com Brossa. Enviei-lhe o seguinte texto, publicado em 8 de março:
Em outubro de 1992, participei, com Waly Salomão, Luciano Figueiredo e Júlio Bressane, de uma mesa-redonda em Barcelona, por ocasião da inauguração da exposição da obra de Hélio Oticica na Fundação Antoni Tàpies. Lá mesmo vi, fiquei entusiasmado e comprei o catálogo de uma exposição, que havia tido lugar em Valencia, de poemas visuais de Joan Brossa. O texto de apresentação desse catálogo, de Victoria Combalía, menciona a importância de João Cabral de Melo Neto – que havia sido cônsul em Barcelona no final da década de 40 e no começo da de 50 – para Brossa, assim como para um grupo de jovens artistas e poetas de Barcelona. O próprio Tàpies, que havia sido um desses artistas, contou-nos várias histórias dessa época.
De volta ao Brasil, em dezembro, ao ser apresentado a Helena Severo, que havia sido nomeada secretária de Cultura do recém-eleito prefeito do Rio, Cesar Maia, sugeri que ela organizasse ciclos internacionais de conferências sobre literatura, arte e filosofia, que poderiam se intitular “Enciclopédia da Virada do Século/Milênio”. Para minha surpresa, dois dias depois ela declarava aos jornais que me convidaria para organizar os ciclos que eu lhe havia proposto. Dito e feito. Aceitei o convite e, poucas semanas depois, Ana Lúcia Magalhães Pinto, que dirigia a programação cultural do Banco Nacional, telefonou-me dizendo que havia lido a matéria nos jornais e que o Banco Nacional estava disposto a apoiar essa iniciativa, cujo nome então mudou para “Banco Nacional de Idéias”.
Chamei Waly para trabalhar junto comigo. Na época, João Cabral era sem dúvida o maior poeta brasileiro vivo. Como Waly e eu o admirávamos imensamente, pensamos logo em incluí-lo no primeiro ciclo que organizássemos. O nome de João nos lembrou seu velho amigo, Joan Brossa. Lembrei-me também de outro “João”, o grande poeta americano John Ashbery. Como nos parecia que o mais difícil de tudo seria conseguir a participação do nosso Cabral, que a essa altura andava bastante recluso, começamos pelos outros. Enviamos cartas para Brossa e Ashbery, que concordaram em nos receber, e viajamos para persuadi-los pessoalmente a vir ao Brasil.
Quando chegamos, na hora marcada, ao edifício em que Brossa morava, em Barcelona, tocamos a campainha várias vezes, inutilmente. Ninguém respondeu ao interfone nem veio abrir a porta. Não havia porteiro. Ligamos de um telefone público para o seu apartamento, mas quem atendeu foi uma secretária eletrônica. Dissemos que estávamos ali, à porta, e nada. Desconfiamos que podia haver algum erro no endereço, e indagamos por Brossa aos garçons de um bar, na esquina. Jamais tinham ouvido falar dele. Disseram-nos que por ali havia, de fato, vivido um poeta, alguns anos atrás, mas que já morrera. Sentimos-nos mergulhados em pleno surrealismo catalão. Pela última vez, ligamos para o número de Brossa e falamos com a secretária eletrônica. Usando toda a sua capacidade dramática, Waly apelou para o sentimentalismo: havíamos atravessado o oceano Atlântico, dois pobres poetas, só para encontrar o grande Joan Brossa. Que desolação voltar para casa sem ao menos trocar duas palavras com o nosso ídolo!
Já estávamos realmente a ir embora, quando percebemos, à porta do edifício dele, uma senhora. Sem jamais a ter visto antes, Waly correu a abraçá-la, e ela abriu os braços para acolhê-lo. Lembrei-me de uma cena do filme soviético “Quando voam as cegonhas”. Essa senhora era a esposa de Brossa. Este estava arrependido de ter consentido em nos receber. Ela, porém, não tendo resistido ao rompante sentimental de Waly, decidira que, querendo ou não, ele nos receberia.
Quando lá chegamos, Brossa foi logo cordial, mas firme: não havia questão de vir ao Brasil, pois se sentia descentrado até quando ia de trem a Valencia (a meia hora de Barcelona). De todo modo, continuamos a conversar. Falamos dos poemas visuais dele, falamos de João Cabral, que ele adorava, falamos do mundo em geral. Em duas horas, ficamos amigos, despedimo-nos e fomos embora, conformados. Que fazer? Procurar outro poeta. Mal chegamos ao hotel e tocava o telefone: Brossa já estava de malas prontas para vir ao Brasil conosco. Felicíssimos, explicamos a ele que o encontro não era naquela semana, mas dali a três meses.
Depois de Brossa, foi relativamente fácil conseguir Ashbery e Cabral. A noite dos três poetas no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio foi extraordinária. Todos eles falaram coisas surpreendentes e memoráveis. Mas vou descrever apenas a performance poética feita por Brossa. Ele havia trazido um tinteiro e uma pena de pato. Molhou a pena no tinteiro e saiu do palco, ostensivamente para escrever alguma coisa. Voltou, molhou novamente a pena e saiu. Fez isso mais uma vez, e trouxe dos bastidores um envelope fechado. Escolheu uma moça bonita na platéia – por acaso era a Renata Sorrah – entregou-lhe o envelope e lhe pediu que o abrisse dali a três minutos. Os três minutos pareceram três horas. Ao abrir a carta, estava escrito: FIM.
Caro A. Cícero,
ResponderExcluirQue bom ler esse seu artigo. Li-vi alguns poemas de Brossa em 1998, época de sua morte, se não me engano. Impressionaram-me a leveza e o bom-humor. Lembro-me de uma folha de árvore, seca e com um clip a prendendo (acho que chamava Burocracia). Onde será que vi esses poemas (esqueci-me completamente)? É verdade que ele era meio andarilho? Lembrei-me também de um outro "poeta-visual", o Bob Brown, depois de ler seu post aqui. Era de outra estirpe, com uns desenhos sarcástico-irônicos. Há alguma edição brasileira desses poetas?
Um abraço
Que inveja da Sorrah! :^)
ResponderExcluirAbrações
Olá, Antônio Cícero.
ResponderExcluirEu gostaria de saber se o Joan Brossa falou em catalão ou espanhol na mesa redonda.
Existe algum registro sobre o que os três falaram ?
Um abraço,
JR.
Caro Homo Antiquus,
ResponderExcluirSim, o Brossa era um andarilho. Em Barcelona, parece que caminhava incessantemente. Vou postar um poema em que ele fala disso. Quando veio ao Rio, um dos seus sapatos estava tão gasto que tinha um furo até no dorso.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro João Renato,
ResponderExcluirAqui, Brossa falou em castelhano. Não existe registro escrito do evento, mas há um vídeo, muito precário, que, se não me engano, nunca foi transcrito. Na época, pretendiamos transcrevê-lo, para o publicar, mas ficamos desanimados quando, ao consultar os participantes, surgiu um problema qualquer de direitos autorais. Não sei onde anda a minha cópia dele, mas Marta, mulher de Waly, também tem uma.
Abraço,
Antonio Cicero
Nossa...o telefonema dramático e o abraço na porta do prédio são totalmente Waly... que saudade, meu poeta querido, que saudade...
ResponderExcluirAlô Cícero, vi uma exposição de Joan Brossa no MAM, em julho de 2006, e até comentei na Jornal de Hoje onde tinha uma coluna diária.
ResponderExcluirAdorei. E havia menção, claro, a amizade do poeta a João Cabral.
PS: Postei trechos do seu depoimento em meu site.
abs
Ailton Medeiros - Natal
lindo texto, linda história, lindo encontro, lindo cicero, lindos poetas.
ResponderExcluirtudo lindo, cicero (rs)!
grande beijo, querido!
Cicero, que bacana ler seu relato! Dá até para imaginar a brilhante atuação de Waly Salomão... Isso daria um excelente roteiro. Um beijo pra você.
ResponderExcluiré, eu sempre me espanto, me assombro com o que sinto, ao ler memórias tão para sempre, assim, Cícero. que bom viver para tantos, não é? beijo,carinho e admiração da Val.
ResponderExcluirE como foi convencer o João Cabral, meu caro? Como já te disse uma vez, sou obcecado por tudo que diz respeito à ele.
ResponderExcluirGrande abraço,
Héber Sales
Caro Héber,
ResponderExcluirVou postar a resposta à sua pergunta no portal.
Abraço,
ACicero