22.3.08

Jorge de Sena: sobre os "Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena"

O poeta Gastão Cruz, no ensaio “Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou ‘a arte de ser moderno em Portugal’”, através do qual tomei conhecimento dos “Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena” que aqui postei ontem, cita as seguintes palavras de Jorge de Sena sobre esses mesmos sonetos:

"Quanto aos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, que encerram e coroam este volume, e são decerto uma supra-metamorfose, limitar-me-ei a transcrever o que, de uma carta minha, foi publicado no nº. 2, 2º. trimestre de 1962, de 1NVENÇÃO, revista de vanguarda, de São Paulo, em que esses sonetos foram primeiro publicados pelos meus amigos concretistas:

‘...trata-se de uma experiência [...] para sugerir mais amplamente do que a própria metáfora ambígua, com as suas fixações de sentido poderia fazer. [...]
O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem corrente da poesia; quero destruí-la como significação, retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação. No último soneto, a maior parte das palavras não é inventada, mas os epítetos gregos de Afrodite. E creio ser curioso como, ligeiramente transformados na acentuação (alguns), igualmente contribuem para a criação de uma atmosfera erótica, concreta, cuja concretização não depende do sentido das palavras, mas da fragmentação delas integrada num sentido mais vasto, evocativo e obsessivo. [...] E é preciso que se liquide de uma vez a ilusão de que a ficção pertence à poesia como tal: só pertence à poesia genericamente considerada como criação e construção de estilo. A poesia como criação de linguagem é supra-real, isto é, engloba a realidade e a sua mesma representação linguística.’”

De: CRUZ, Gastão. “Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou ‘a arte de ser moderno em Portugal’”. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.33-54.

9 comentários:

  1. Olá, Antonio Cícero.
    Serão esses sonetos "literatura abstrata"?
    Um abraço,
    João Renato.

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  2. Olá, Cícero, salve!
    Interessante a discussão que estes poemas e sua argumentação suscitam.
    Primeiro, como modernista, Jorge de Sena nada mais faz que praticar a estética da negação, creio, coerente com as vanguardas históricas e sua crença de que o progresso é um fato inclusive nas artes, não só da indústria, da economia, etc.
    "Eu não quero ampliar a linguagem corrente da poesia; quero destruí-la como significação, retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação." diz ele.
    Bem, acho que se faz muito melhor poesia quando se consegue este mesmo efeito: o gesto imaginado valendo muito, ou seja, o som sibilante das palavras capturando aquele que lê, tanto quanto o sentido que também ali espreita e envolve.
    Poesia não seria uma eterna negociação entre som e sentido (aquilo que se diz e o "como" é dito)?
    Para ilustrar me vem à mente agora o Transparências: "venho da praia de um verão em que as ondas rolam redondas e lisas
    sobre o mar sem formar espumas
    e os olhos gulosos engolem glaucas e mornas transparências
    goles de azul e verde
    fazendo inveja à língua aos lábios e à goela".
    Não é este um bom exemplo de ajuste das duas condições?
    abraço forte,
    Nuno Rau

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  3. Caro João Renato,

    acho que sim, por analogia à pintura abstrata, por abstraírem da dimensão "mítico-semântica", como diz o Jorge de Sena.

    Mas acho que, considerados de outro ponto de vista, exatamente por se concentrarem na forma material, e por, como diz, de novo, o Jorge de Sena, produzirem uma "atmosfera erótica, concreta, cuja concretização não depende do sentido das palavras, mas da fragmentação delas integrada num sentido mais vasto, evocativo e obsessivo", podem ser considerados, ao contrário, como concretos.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  4. Caro Nuno,

    concordo inteiramente com o que você diz.

    Abaço,
    ACicero

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  5. Prezado Antônio Cícero,

    A pintura abstrata muitas vezes também evoca significados bastante concretos, mesmo desprezando a figura.
    Acho que o mais interessante dos poemas foi o autor ter rompido com o significado das palavras utilizando-se de uma forma tão clássica como o soneto. Inclusive, respeitando a rima e uma certa métrica. Se fossem escritos em verso livre, creio que não teriam a mesma força.
    Na primeira vez em que eu os li, condicionado pela estrutura lógica tradicional da frase e do soneto (introdução, desenvolvimento e conclusão), até dei uma entonação, como se o texto tivesse lógica e sintaxe.
    Um abraço,
    JR.

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  6. Prezado A.Cícero,
    Permita-me o diletantismo, ou não; por intuição apenas, sinto que os formalismos são um poço sem fundo: exercícios helicodais,sem fim, absolutamente necessários para a árdua pedagogia de poetas para poetas para poetas...A mim isso tudo interessa quando as apóricas águas empuxam drummonds, bandeiras, leminskis e cíceros. E por assim dizer:
    "Les reins portent deux mots gravés: Clara Venus;/-Et tout ce corps remue et tend sa large croupe/belle hideusement d'un ulcère à l'anus."
    Grato por essa casa de portas abertas.
    Abço!

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  7. Caro Homo Antiquus,

    Excelente lembrança a sua! Amanhã vou postar a "Venus Anadyomène" de Rimbaud.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  8. Caro Cicero,

    Será mesmo possível destruir "a linguagem corrente da poesia [...] como significação"?

    A proposta do Jorge Sena me parece uma utopia na medida em que ele usa recursos convencionalmente poéticos.

    Por exemplo, notemos como o João Renato foi induzido a leitura padrão para o soneto (vide comentário do próprio acima).

    Isso sem falar no título, o qual, dependendo do repertório cultural do leitor, pode muito bem condicionar a interpretação das palavras inventadas no poema.

    Poderíamos também pensar nas associações que se pode fazer entre as estas e palavras conhecidas com sons e morfologia parecidas, as quais, em tese, contaminariam os termos desconhecidos com suas qualidades.

    Abração,
    Héber Sales

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  9. Só agora descobri este excelente blog.
    Evitarei mais elogios mas serei visita
    habitual. Só lamento os «fatos» e os
    «abstratos» «ativos», ingredientes bem amargos com que nos afundamos no oceano
    da «deceção». Seremos bons vizinhos mas
    sem acordâncias.

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