O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 6 de Outubro de 2007:
A crítica e a religião
RECENTEMENTE, FORAM publicados vários livros que contestam a religião e mesmo a crença na existência de Deus. Creio que o de Richard Dawkins ("Deus, um Delírio"; Cia. das Letras, 2007; 528 pág., R$ 54) é, até agora, o mais conhecido e discutido, pelo menos no Brasil. Confesso que, inicialmente, não me senti muito animado a lê-lo. É que, tendo conferido algumas recensões de "Deus, um Delírio", eu havia ficado com a impressão de que o forte desse livro era tentar dar uma explicação darwinista das religiões e da crença na existência de Deus.
Ora, embora eu tenha uma admiração imensa pela teoria científica da evolução das espécies, sempre considerei excessivamente grosseiras todas as tentativas que até hoje conheci de exportá-la para o campo da sociedade humana.
Entretanto, alguns excelentes artigos, dentre os quais um do próprio Dawkins e outro do Marcelo Coelho (ambos na Ilustrada de 25/08), acabaram por atiçar a minha curiosidade a tal ponto que, na semana passada, decidi ler "Deus, um Delírio". Resultado: cheguei à conclusão de que se trata, em suma, de um livro desigual, mas que certamente merece ser lido.
Deixarei para comentar o livro do Dawkins outro dia, pois hoje quero tocar em algumas questões incidentais. Há quem se surpreenda com o fato de que, aparentemente, foram editados mais livros anti-religiosos na primeira década do século 21 do que nas últimas cinco décadas do século 20. Só dos livros traduzidos para o português, lembro-me, além do de Dawkins, do de Michel Onfray ("Tratado de Ateologia"; Martins Fontes, 2006), do de Daniel Dennet ("Quebrando o Encanto"; Globo, 2006), e do de Christopher Hitchens ("Deus Não É Grande"; Ediouro, 2007).
A que se deve esse fenômeno editorial? Em grande parte, sem dúvida, à percepção do risco que correm os direitos humanos em toda parte do mundo – ou melhor, à percepção do risco que corre o próprio mundo –, tanto em conseqüência dos atentados terroristas perpetrados por extremistas religiosos muçulmanos quanto em conseqüência do aumento da influência dos extremistas religiosos cristãos sobre a política interna e externa norte-americana.
Mas a questão realmente interessante talvez seja outra: por que é que, ao contrário do que ocorreu nos séculos 18 e 19, é difícil lembrar algum livro desse tipo que se tenha destacado, no século 20, na Europa ou nos Estados Unidos? Houve, sem dúvida, inúmeros ateus e agnósticos entre os cientistas, filósofos, escritores e artistas da época, mas, com a exceção de Bertrand Russell, não me ocorre nenhum pensador importante que tenha escrito específica e explicitamente contra a religião.
Será talvez que se haja pensado, como Marx, que a crítica da religião já se tivesse completado? A melhor descrição que conheço do estado de espírito em que, no que toca a religião, a maior parte dos intelectuais se encontrava no final do século 20 é a que o filósofo norte-americano John Searle fez, no seu admirável livro "Mind, Language and Society", de 1998.
Para ele, o mundo moderno simplesmente se desmistificara. Um exemplo dessa desmistificação é, segundo ele, a história de são Miniato, em honra ao qual ergue-se a igreja de San Miniato, em Florença. São Miniato foi um mártir cristão. Tendo sido condenado à morte, ele sobreviveu ao ataque de leões na arena, mas acabou sendo decapitado. Levantou-se então, pôs a cabeça debaixo do braço, saiu da arena, atravessou o rio e saiu da cidade. Em seguida, subiu até o topo do morro ao sul do Arno, e lá se sentou. Nesse lugar foi construída a sua igreja.
Segundo Searle, hoje os guias da cidade têm até vergonha de contar essa história. "O que interessa", diz, "não é o fato de que a consideramos falsa, mas o fato de que não a levamos a sério nem mesmo como uma possibilidade".
"Hoje em dia", observava Searle, "até evocar a questão da existência de Deus é considerado de mau gosto. Os assuntos religiosos são como os que dizem respeito às preferências sexuais de cada qual: não devem ser discutidos em público, e mesmo as questões abstratas só são discutidas por chatos".
Searle escreveu o texto há menos de dez anos; no entanto, ele já parece pertencer a outra época. Em 2007, é evidente que, longe de se limitarem à esfera privada, algumas religiões alimentam o sonho teocrático de privatizar o espaço público e policiar o privado. Assim, é importante que se escrevam e discutam livros como o de Dawkins.
É engraçado ler o artigo quando se tem na cabeça que 'fé' e 'deus' são dois conceitos completamente diferentes, por mais que andem juntos...
ResponderExcluirNa minha muito insegura opnião, acho que boa parte desse 'colocar em off' tais questões, remete muito ao fato de que tudo aquilo que nos cerca e de que a gente precisa esteja encerrado cada vez mais no âmbito material, no urbano, no corpo, naquilo que se faz cotidiano. É quase um processo de coisificação da idéia e essência do que é 'ser humano', me parece até uma espécie de pós-antropocentrismo (pra ser radical). Não encaro isso de uma forma negativa. Só não tenho respaldo (e nem sei se o quero) para saber aonde isso vai dar...
Caro Antônio,
ResponderExcluirConcordo com a idéia de que crenças religiosas são como preferências sexuais: íntimas. Mas acho que um clima no qual se tem vergonha de falar a respeito de sexualidade e de fé é prejudicial. Acho péssimo que as pessoas tenham vergonha de dizer que acreditam em algo, pois isso é uma forma de consura implícita, um veneno para a liberdade de pensamento e expressão. Esses assuntos não devem ser tabú. Livros que discutem crenças religiosas, numa direção ou outra, são bem-vindos.
E acho que há um pouco de confusão quanto à responsabilidade da religião em episódios de desrespeito aos direitos humanos e atentados terroristas. O perigo real não são as crenças em si, mas o uso da fé como instrumento de poder, e do poder como um pretenso instrumento de propagação da fé.
Esse tipo de uso, longe de ser um elemento comum a todas as religiões, é antes um elemento exclusivo de certas organizações.
O que não cabe no mundo moderno é a teocracia, que no fundo é pior tanto para o ateu quanto para o crente, e não as crenças individuais na existência ou não de deus.
um abraço,
lucas
Aguardarei ansiosamente por seu próximo artigo sobre o assunto. Não li nenhum dos livros mencionados, mas li resenhas, entrevistas e artigos dos autores. Até agora não soube de nenhum argumento novo e sólido contra Deus e a religião. Esses autores partem de questionáveis generalizações [não distinguem religião de seita, p.ex.], abusam de hipóteses ad hoc [p. ex., para separar o que é religioso do que não o é] e não têm senso histórico. Além disso, passam longe do princípio da caridade: optam sempre pela interpretação menos favorável ao adversário [como se os teólogos e religiosos fossem todos uns tolos supersticiosos]. Curisosamente não tratam de fenômenos tipicamente religiosos [sucedâneos], como as ideologias político-salvacionistas e cientificistas.
ResponderExcluirOs deuses se apaixonam e namoram.
ResponderExcluirInclusive com os homens, quando estes têm paixão.
Homens e deuses têm seus laços.
Têm também os seus prazeres, suas idiossincrasias e perversidades.
Eu sou um homem que queria ser um deus.
Quando morrer, vou conversar com eles sobre isso.
Deidades se apaixonam pelos homens, à distância.
Homero e Jorge Amado já falaram sobre isso.
Abre-se a Tenda dos Milagres para refrescar Ulisses,
sedento, em sua volta para casa.
Pedro Archanjo fala sobre os Orixás,
enquanto Exu espia a tudo do seu canto,
como um Hermes mais malandro, sinuoso, matreiro e espectral.
Quando sonham, os deuses são humanos.
Já os homens, quando sonham, são divinos.
Divindades se apaixonam e se abraçam, e procriam,
e despencam, sobre a Terra,
onde nascem, assustados, como nós.
Entendo a sua preocupação, mas acho que seria injusto com Searle pensar que o que ele está dizendo tem algo a ver com censura. Também nada tem a ver com vergonha. O que ele quer dizer é que, entre pessoas civilizadas, no mundo moderno, o caráter privado tanto das crenças religiosas quanto das preferências sexuais já era ponto tão pacífico que chegava a ser de mau gosto quem, não sendo capaz de perceber isso, insistisse em questionar a preferência sexual ou religiosa alheia, ou em propagandear a sua própria preferência sexual ou religiosa. O problema passara a ser de natureza estética: pouca coisa era considerada mais cafona, por exemplo, do que o proselitismo religioso ou anti-religioso. Por isso, só um chato tentaria provar para alguém a existência ou a não-existência de Deus; ou que a homossexualidade fosse pior ou melhor do que a heterossexualidade.
ResponderExcluirO extremismo religioso contemporâneo é, a meu ver, principalmente uma reação contra o mundo moderno. O que ele quer é regredir a uma situação em que, como digo no meu artigo, privatiza-se o espaço público e policia-se o privado. Dada essa situação, somos obrigados a voltar a falar de assuntos chatos.
A verdade é que se os extremistas religiosos americanos não tivessem tentado negar a teoria da evolução, introduzindo o criacionismo – ou seja, a sua religião particular – nos currículos das escolas públicas, Dawkins não teria tido que escrever o seu livro.
Um abraço,
Antonio Cicero
Salvo engano, o Dawkins está nessa sua militância anti-religião há mais de vinte anos [O relojoeiro cego é de 1986], portanto, desde bem antes da era Bush e de os fundamentalistas criacionistas contra-atacarem.
ResponderExcluirCaro Edson Gil,
ResponderExcluirO "Relojoeiro cego" não é em primeiro lugar um livro sobre o teísmo ou o ateísmo, mas sobre a teoria da evolução através da seleção natural. É na defesa desta que Dawkins já critica, nesse livro, a teoria do "intelligent design" e o criacionismo em geral.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Antônio,
ResponderExcluirObrigado pelas explicações. Não havia compreendido bem a que se referia o autor. Obviamente também considero mau gosto exigir conhecer a preferência sexual ou religiosa de alguém.
Concordo que os movimentos fundamentalistas são negações do mundo moderno, mas não creio que sejam tentativas de regredir a um estado anterior, e sim tentativas de ascender a uma situação idealizada que de fato nunca existiu plenamente. Não me parece que os fundamentalistas se satisfaçam com simplesmente regredir ao mundo tradicional. Eles buscam elevar a teocracia a um nível de dominação tão elevado que acaba por se opor não apenas à modernidade, mas mesmo à religião em sua forma tradicional.
É um tanto desanimador ver que o mundo se "polariza" entre diferentes fundamentalismos, e quanto ainda estamos distantes de uma solução racional que realmente viabilize as liberdades individuais...
um abraço,
Lucas
pois é, cicero,
ResponderExcluirli o seu texto, alguns comentários, mas o seu comentário, aqui, esclarece tudo melhor do que o que poderia escrever. certa mente (rs).
entendi também que os chatos não são os que conversam sobre religiões e sexualidade, mas os que tentam (com)provar a superioridade de suas escolhas em relação às outras quando se propõem a uma conversa. e chegam, em alguns casos, à imposição de suas idéias. porque, hoje, todos carecas de saber que não se pode (con)firmar a existência de/dos deus(es), o lance é cada um acreditar no que lhe couber melhor, sem a neura de que a sua crença é o melhor pra si E pros outros. é a tal escolha que merece o seu recolhimento, sem imposições.
é mais ou menos isso. mas inda bem que tenho vc para maiores esclarecimentos (rs).
pois é o que já lhe perguntei: que seria de mim, meu deus, sem a fé em antonio? que seria? (e olhe que a pergunta é bem pertinente ao assunto! - rs)
agora me vou.
beijim, boniteza!
PREZADO ANTONIO CICERO,
ResponderExcluirLI SEU ARTIGO, COMO SEMPRE O FAÇO. TODAVIA, NÃO ESTAVA DISPOSTO A ESCREVER. TODOS SABEMOS QUE TODO TIPO DE RELIGIÃO É ALGO QUE SURGE DE UMA ´ABSURDIDADE,COMO JÁ DISSE CERTA VEZ. E EU NÃO SOU O MEU AMIGO PSIQUIATRA PARA FALAR SOBRE ISSO. MAS OUVIR VOZES, VER IMAGENS, SERIAM ALGUNS TIPOS DE ALUCINAÇÕES PATOLÓGICAS. E SE FOSSE COMIGO, EU JÁ ESTARIA INTERNADO HÁ TEMPO. ENTRETANTO, CADA UM TEM O SEU ESCOPO DE FÉ, SEJA PARA O QUE POSSA SER. É UM TIPO DE MORALIDADE REGULADORA TAMBÉM. O PROBLEMA, A ME VER, É QUE ESSA MORALIDADE QUE PODERIA FICAR ADSTRITA ÀS INDIVIDUALIDADES, VIRA UM TIPO DE SUPERESTRUTURA MAIOR E É AÍ- O QUE AINDA PENSO - QUE O CALDO ENGROSSA E ACABA PREOCUPANDO AS PESSOAS. O PROBLEMA DE FÉ É UMA COISA PARTICULARIZADA E QUE CABE ÀQUELE QUE TEM FÉ SEGUIR OU NÃO. MAS O QUE ME PREOCUPA É ESSA PREOCUPAÇÃO E ESSE EMBATE MORAL ENTRE O LAICO E O NÃO-PROFANO. E NESSE SENTIDO, NÃO SEI DE QUE LADO FICAR, PORQUE A PRÓPRIA CHAMADA CIÊNCIA NÃO DÁ CONTA DE OUTRAS QUESTÕES QUE TERIA QUE DAR, O QUE DÁ UM SABOR A ESSAS DISCUSSÕES MEIO INSÍPIDO -- POSTO QUE NÃO ESTRUTURADAS NUMA RATIO PARA JUSTIFICAR OS CONTENDORES.
Há cerca de 10 anos, Dawkins escreveu um artigo [The Improbability of God, disponível aqui: http://www.secularhumanism.org/library/fi/dawkins_18_3.html] baseado em parte em "O relojoeiro cego". Veja como ele começa:
ResponderExcluir"Muito do que as pessoas fazem é em nome de Deus. Os irlandeses mandam-se uns aos outros pelos ares em nome de Deus. Os árabes mandam-se a si próprios pelos ares em nome de Deus. Os imãs e os aiatolás oprimem as mulheres em nome de Deus. Os papas e os padres celibatários destroçam a vida sexual das pessoas em nome de Deus. Os shohets judeus cortam a garganta de animais vivos em nome de Deus. As proezas da religião no passado ― cruzadas sangrentas, inquisições que praticavam a tortura, conquistadores que assassinavam em massa, missionários que destruiam culturas, resistência reforçada legalmente e até ao último momento possível a cada nova verdade científica ― são ainda mais impressionantes. E tudo isso para quê? Creio que se torna cada vez mais claro que a resposta é: absolutamente para nada..."
Não sei se se trata apenas de uma falácia ou de má-fé. Do fato de muitos atos de violência terem sido e ainda serem cometidos em nome de Deus e da religião não se segue que as religiões só tenham dado origem a atos violentos e destrutivos. É bem possível que o Dawkins tenha escrito essas frases ingênuas ouvindo uma tocata de Bach... Muito menos se segue desse fato que todos ou a maioria dos atos de violência se devam à religião ou aos religiosos. Dawkins parece achar que os homens somos anjos, ou no mínimo bons selvagens, corrompidos pela religião! Talvez ele acredite que a ciência seja neutra e, se não faz mal ao homem, pelo menos não o prejudica... E agora veja como ele conclui o artigo:
"Os detalhes da fase inicial do universo pertencem ao reino da física e eu sou biólogo, mais interessado nas últimas fases da evolução em complexidade. Para mim, o ponto importante é que, mesmo se o físico precisa de postular um mínimo irredutível que teve de estar presente no começo, para que o universo começasse, esse mínimo irredutível é certamente extremamente simples. Por definição, as explicações construídas sobre premissas simples são mais plausíveis e mais satisfatórias do que as explicações que têm de postular começos complexos e estatisticamente improváveis. E dificilmente poderemos encontrar algo mais complexo do que um Deus Todo-Poderoso!"
Dawkins tira o time de campo na hora H... Mas ele não precisava nem falar de Deus: o próprio mínimo que os físicos precisam pressupor para que o universo seja possível já é tão imensamente improvável que nem precisamos passar adiante -- afinal se trata "apenas" de um começo a partir do nada. Duvido muito que a navalha de Ockham seja aqui de alguma serventia.
Antônio Cícero,
ResponderExcluirMeu nome é Argos Arruda Pinto e no sábado retrasado li seu artigo na "Folha" sobre o livro do Dawkins.
Não li ainda o livro mas vi que você possui algumas reservas sobre a Teoria da Evolução, em resumo, aplicada na sociedade humana.
Gostaria que lesse dois artigos meus: "O Relativismo das Religiões e a Verdade sobre Isto" e "E o Homem Criou Deus" no meu blog - ainda não acabado - www.orelativismodasreligioes.blogspot.com.
Escrevo este comentário pois gosto de conversar com pessoas abertas e de interesses iguais.
Um abraço.
A Miscigenação do Espírito
ResponderExcluirA dúvida se instaura em pleno cerne de onde eu penso o mundo.
A fé responde prontamente a como eu sinto o mundo.
Entre um e outro,meu ser navega.
Não existe o Léo de ceticismo sem mais nada.
E não existe o misticismo sem cogito interferente.
Dentro de mim habita um grego que trafega pela pólis.
Um cristão primivíssimo rezando em catacumbas.
Um africano e seus ebós à meia-noite em plena mata.
Um indiano reverente.
Um chinezinho muito sábio com suas poções.
A seu lado um índio livre (brasileiro) evoca deuses naturais.
Mas há também um francesinho renitente,de olhos vesgos,
desacreditando em tudo com Le Monde pela mão.
Caro Lucas,
ResponderExcluirVocê tem razão. O que os fundamentalistas querem não é simplesmente regredir ao mundo tradicional. Querem algo mais radical. Mas me parece que o mundo que eles querem é, em primeiro lugar, algo antinômico à sociedade moderna e aberta, que vêem como decadente, cheia de vícios, atéia, perdida. Ora, o oposto da sociedade moderna e aberta seria uma comunidade anti-moderna e fechada. Tal é o mundo que eles idealizam. Mas, como penso que o anti-moderno é, no fundo – embora às vezes inconscientemente – o pré-moderno, acho que, no fundo, o que eles querem é uma pré-modernidade idealizada.
Abraço,
Antonio Cicero
olá Cicero,
ResponderExcluircomprei o livro a caminho do México, em Amsterdam... e não passei do primeiro capítulo (confesso que a meio da viagem comprei o último Harry Potter...)
a minha questão com o livro, a razão porque desanimei, não foi bem Deus, nem propriamente Dawkins.
reconheço Dawkins como sendo essencial no estudo e debate da teoria evolutiva, embora, é sempre bom lembrar, não se deva nunca perder o sentido crítico quando se lê um mestre (e ele não é a excepção que confirma a regra).
quanto a deus, (falo enquanto cientista) ele é uma variável experimental que poderia ser terrível por não ser controlável: se de facto existe, ele tanto pode estar no grupo controlo de uma experiência, como no grupo experimental, como nos dois.
o que é importante (cientificamente falando), é que não há memória de uma experiência que tenha perdido o seu valor explicativo por isso: o progresso científico fez-se sem nunca se poder saber se deus actuava no frasco A, ou no B, ou em ambos.
ou seja, como variável, se existe, deus é cientificamente irrelevante.
e foi isso, eu acho, que me desanimou no primeiro capítulo do livro: não me pareceu que se tratasse de uma perpectiva científica da questão - penso que a temática do livro é tratada por Dawkins, o filósofo (tb não quero ofender ninguém) e não por Dawkins, o cientista.
até hoje, a Ciência não precisou de ter Deus em conta e é só nesta medida que se pode pronunciar sobre Ele.
o inverso tb é verdadeiro: as Religiões não precisam de Ciência - e, reconhecendo isso,
é-lhes impossível que se pronunciem sobre ela.
o problema nos EUA e noutros países, hoje e sempre que houve problemas, é que isso não se verifica: a massa religiosa (que, note-se, não se reconhece como sendo Deus) entende que se pode pronunciar cientificamente - acho, não preciso de enunciar com que prejuízo.
dito isto, se calhar devia ir ler o livro...
mas na verdade o que preferia mesmo era ler o que pensas sobre a forma como a teoria evolutiva trata a espécie humana - tens ensaios já publicados? não queres publicar um aqui?
Abraço,
Filipa
Filipa,
ResponderExcluirDe maneira geral, concordo com você. Mas ainda vou escrever mais um ou dois artigos sobre o livro do Dawkins.
Beijo,
Antonio Cicero
O Estado de S. Paulo publicou em 7/1/07 um artigo de Pedro Doria sobre as 6 questões que mobilizam as grandes mentes. O primeira questão versa sobre a religião e começa assim: "Quando a ciência explicar a origem do Universo e do Todo, Deus ficará obsoleto, diz Richard Dawkins. Seu companheiro na luta contra religiões, o filósofo Daniel Dennett, considera o processo irreversível. Quanto mais educada uma população, quanto mais a informação circula pelos meios de comunicação, maior o número de ateus. Os números, na Europa, confirmam tal declínio." Se o autor estiver certo, os dois cientistas-filósofos simplesmente não sabem do que estão falando. A questão da origem do universo e da vida são, na verdade, irrelevantes para a teoria sintética da evolução ou neodarwinismo. Essa teoria se ocupa da evolução do universo e da vida já existentes. E o faz "como se" não houvesse uma primeira causa, portanto "anterior" ao big-bang. As ciências positivas buscam causas e não podem chegar a uma primeira causa, pois esta teria de ser causa de si mesma. Mas uma causa de si mesma é, para a ciência, um absurdo. O problema é que esses cientistas-filósofos não estão apenas defendendo a teoria científica da evolução, mas sim o evolucionismo -- uma ideologia metafísica.
ResponderExcluirEdson,
ResponderExcluirde facto, não conheço resultado científico que negue a existência de Deus. também não me parece que valha a pena esperar que a ciência venha, algum dia, a produzir esse resultado (por razões que já expliquei - ver post acima).
não me parece que existam argumentos científicos que neguem religiões, democracias parlamentares ou presidenciais, obras de poesia, ou de pintura. ou seja, não me parece que existam argumentos científicos que neguem as criações (artísticas?) humanas. (reconheço que, dito assim, este aspecto é mt questionável e por isso desenvolvo melhor, abaixo).
de facto, penso ser perfeitamente possível acreditar em Deus e ser cientista - mas é importante não confundir "acreditar em Deus", com "acreditar que o mundo foi criado em 7 dias", ou "acreditar que a primeira mulher foi criada a partir de uma costela". estes pressupostos e outras têm, à luz do conhecimento de hoje, que ser reconhecidas como metáforas necessárias para respostas que, em dada altura da história da humanidade, não existiam.
se a república portuguesa instituisse uma lei que, atribuindo a decisão sobre o sexo dos filhos à mãe, proibisse o nascimento de filhos do sexo masculino, a ciência negaria o pressuposto da lei (que as mães decidem o sexo dos filhos) - o que é diferente de pôr em causa a república, ou a ideia de democracia.
a ciência pode negar pressupostos legais ou religiosos, mas isso é diferente de poder negar repúblicas, democracias, religiões, e fé num ou em mais deuses.
se o número de ateus aumenta com o grau de educação de uma população isso pode ser explicado porque, de facto, a educação fornece respostas para perguntas cujas respostas eram atribuídas a Deus - como parece ser o que se defendia no artigo que leste. o que o artigo então diz, é que a única razão porque há religiões é porque há falta de respostas. é uma hipótese.
mas outra hipótese, é que a educação fornece razões para se duvidar do propósito e das acções das instituições religiosas. neste caso, as pessoas podem ter deixado de ser "religiosas" sem se terem tornado ateus.
Richard Florida, por exemplo, argumenta que o número de pessoas que acredita em Deus não diminuiu com o grau de educação nos EUA; o que diminuiu foi o número de "filiados" em religiões.
Richard Florida explica que a questão da fé, nos EUA, e na Europa, tem vindo a passar para o domínio do privado, do pessoal, em vez de ser "tratada" como uma questão social, associada a cerimónias de grupo. ele associa este processo a toda uma série de outras modificações socio-culturais registadas nos países ditos "ocidentais" mais ou menos a partir da segunda metade do séc. XX.
resumindo, é preciso ter atenção ao que se diz ser o "número de ateus", porque este pode estar a ser confundido com o "número de agnósticos" nos inquéritos que originam as estatísticas - neste segundo caso, não é o divino (Deus) que entra em crise com o progresso científico, são talvez as instituições religiosas.
como já disse, penso que se de facto as pessoas compreendem a ciência, não têm razão nenhuma para abandonar uma crença em Deus... poderão, no entanto, ter razões para querer discutir com o Papa.
mais importante para mim é que se perceba que ciências como a biologia e a física (bioquímica, matemática etc) não servem só para estudar "processos evolucionistas", como os defines.
o big bang trata da origem do universo mas o trabalho não acaba aí - a pesquisa teórica em física tenta perceber que características teria o "ovo cósmico" para poder rebentar. (uma das propostas passa pela "Teoria de Cordas", podes ler Brian Greene).
o processo da origem da vida no nosso planeta encaixa perfeitamente naquilo que forma a teoria evolutiva por selecção natural na sua formulação moderna, ou neo-darwinista - resumo, abaixo, a hipótese mais consensual, sem detalhar a evidência empírica existente (mas, para a história toda (muito mais bem contada) podes ler O Gene Egoísta, de Dawkins).
Abraço,
Filipa
versão neo-darwinista mais consensual para a origem da vida na Terra:
a origem da vida na Terra é explicada a partir da formação de moléculas suficientemente estáveis para serem replicadas com fidelidade. à uma série de moléculas que se criam expontaneamente em dadas condições. mas algumas moléculas prevaleceram em relação a outras, menos estáveis, menos replicáveis. as moléculas com capacidade replicadora que prevaleceram correspondem, provavelmente, ao que hoje chamamos RNA (o DNA terá vindo depois). os ácidos núcleicos, RNA e DNA, são o material genético de todos os seres vivos deste planeta até à última célula.
o processo que leva à substituição de uma "sopa" de moléculas, por uma forma cada vez mais abundante não é mais do que um processo de selecção natural, como o que deu origem a todas as espécies a partir da primeira célula (aquilo a que chamas "evolucionismo").
evolução por selecção natural é um processo de competição; aplicado às moléculas no contexto da origem da vida, funciona assim: dado que o número de átomos dos elementos necessários para fazer cópias de uma molécula não é infinito, num dado local, num dado instante de tempo, existe competição entre moléculas de tipos diferentes para determinados elementos. portanto, moléculas mais "competidoras" (mais estáveis e com maior eficiência de replicação) começam a prevalecer em relação a outras.
uma forma de adquirir estabilidade é estar rodeado por uma membrana (ou "dentro de uma bolha"). as bolhas mais fáceis de fazer em água são as de gordura e todas as células do planeta estão rodeadas por membranas lipídicas (lípidos são gorduras). Moléculas estáveis, com propriedades replicadoras, rodeadas de membranas lipídicas são aquilo que consideramos terem sido as "proto-células".
os detalhes bioquímicos de todo este processo não estão esclarecidos e é difícil (ou impossível) encontrar fósseis que confirmem estas hipóteses - no entanto, muitas das fases enunciadas podem, e foram, realizadas em laboratório.
Filipa,
ResponderExcluirNo principal, concordo com você. Só algumas observações: o ovo cósmico, se existiu, foi formado por matéria preexistente -- mas de onde veio essa matéria?; quando falo de origem da vida, não me refiro apenas ao nosso planeta, mas à vida como tal; nem todo criacionista é um fundamentalista, nem sequer precisando acreditar num deus pessoal, aliás, nem exatamente numa criação no sentido estrito [a emanação, p.ex., é uma alternativa]; por fim, a ciência é tanto criação humana quanto a religião. -- Você decerto sabe que o Dawkins e o Dennett, entre outros, não devem estar de acordo com você. Abraço, Edson Gil
Querida Filipa,
ResponderExcluirGostei muito da sua "versão neo-darwinista mais consensual para a origem da vida na Terra". É uma exposição inteligente e didática.
Beijo,
Antonio Cicero
Caro Edson Gil,
ResponderExcluirA questão sobre a origem do universo não se esgota com o Big Bang. Mas não é preciso buscar uma explicação religiosa para ela. A teoria das cordas, por exemplo, e do multiverso, que a Filipa menciona, é uma das hipóteses. Outra, bastante plausível, é a de Wheeler e Linde, que concebem o cosmo como um processo cíclico eterno, em que, após o Big Bang, haveria um processo de expansão, seguido de um processo de reconcentração, que levaria a um "Big Crunch" (o oposto do big bang); seguido de um "Big Bang" etc., ad aeternum.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Antonio Cicero,
ResponderExcluirDesde quando a criação-manifestação é uma explicação exclusivamente religiosa da origem do universo? A menos que, para você, metafísica e religião sejam a mesma coisa. Como quer que seja, não há como escapar de postulados metafísicos: ou o universo não teve um começo ou o teve. O problema é que a tese -- metafísica -- de que o universo não teve um começo não pode ser falseada; e a de que o teve explica esse começo a partir de um material preexistente -- o que apenas desloca o problema, mas não o resolve. Não é preciso ser especialista para saber que a ciência não é capaz de explicar o começo absoluto, pois o conhecimento científico é positivo, causal, e não pode admitir uma causa sui, isto é, sem transgredir os próprios limites. Aliás, falando nisso, essa teoria da sístole-diástole do universo é tão antiga quanto os vedas!
Abraço,
edg
Caro Edson,
ResponderExcluirNormalmente, quando se fala de criação da natureza, subentende-se um Criador sobrenatural, isto é, Deus. E quando se fala de criação, sobrenaturalidade e Deus, entra-se no terreno das religiões monoteístas.
De toda maneira, a minha intenção era dizer que é possível conceber o Big Bang sem recorrer ao criacionismo, pois o Big Bang não precisa ser tido como um começo absoluto. Você tem razão ao dizer que nem a tese de que o universo teve um começo absoluto nem a tese de que jamais teve começo são científicas: podemos considerá-las metafísicas; mas a verdade é que a primeira, além de metafísica, tem grande afinidade com a religião.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro ACicero,
ResponderExcluir"Normalmente, quando se fala de criação da natureza, subentende-se um Criador sobrenatural, isto é, Deus."
'Deus' é apenas um nome. Posso empregá-lo para designar tanto o Deus das religiões monoteístas como também o do Vedanta Advaita, do neoplatonismo e mesmo o deus dos filósofos. Em nenhum momento falei de um deus pessoal.
"E quando se fala de criação, sobrenaturalidade e Deus, entra-se no terreno das religiões monoteístas."
De modo algum! Pelo menos não exclusivamente. O deus neoplatônico, p.ex., é ao mesmo tempo natural, ou imanente, e sobrenatural, transcendente. Não preciso defender literalmente a criação bíblica para ser criacionista.
"De toda maneira, a minha intenção era dizer que é possível conceber o Big Bang sem recorrer ao criacionismo, pois o Big Bang não precisa ser tido como um começo absoluto."
Pois é, eu queria saber o que é mais irracional, a idéia de um universo sem começo ou a da criação-emanação -- que, aliás, não implica um começo no tempo!
"Você tem razão ao dizer que nem a tese de que o universo teve um começo absoluto nem a tese de que jamais teve começo são científicas: podemos considerá-las metafísicas; mas a verdade é que a primeira, além de metafísica, tem grande afinidade com a religião."
E qual é o problema? Parece-me que você quer evitar a todo custo qualquer afinidade com a religião. Mas isso é impossível, pois deus sempre foi um dos maiores temas e problemas filosóficos, senão o mais importante deles [como mostra Weischedel]. Agora, do fato de a religião ter afinidade com idéias filosóficas não se segue que essas idéias sejam elas mesmas religiosas. Não são. Muito menos monoteístas.
Abraço,
edg
Caro Edson Gil,
ResponderExcluirQuero, em primeiro lugar, dizer que acho muito intrigante e original a sua posição, aparentemente neoplatônica. Plotino me interessa muito. Mas, ao mesmo tempo que ela se torna mais clara, no todo, ainda a percebo de modo confuso, no detalhe.
No que segue, ao comentar o seu comentário do meu comentário, abreviarei nossos nomes, antes de cada enunciado.
Adianto também que devo viajar amanhã, de modo que provavelmente não poderei responder a qualquer comentário seu senão domingo.
AC - "Normalmente, quando se fala de criação da natureza, subentende-se um Criador sobrenatural, isto é, Deus."
EG - 'Deus' é apenas um nome. Posso empregá-lo para designar tanto o Deus das religiões monoteístas como também o do Vedanta Advaita, do neoplatonismo e mesmo o deus dos filósofos. Em nenhum momento falei de um deus pessoal.
AC - Nem eu.
IDEM - "E quando se fala de criação, sobrenaturalidade e Deus, entra-se no terreno das religiões monoteístas."
EG De modo algum! Pelo menos não exclusivamente. O deus neoplatônico, p.ex., é ao mesmo tempo natural, ou imanente, e sobrenatural, transcendente. Não preciso defender literalmente a criação bíblica para ser criacionista.
AC – Pelo menos no terreno do monoteísmo se entra. O fato de que o “deus neoplatônico” é no fundo o Um não torna o neoplatonismo o monoteísmo por excelência? Outra questão: quando se fala em criação, normalmente se entende creatio ex nihilo, onde esse “ex”, como dizia Tomás de Aquino, não indica a origem, mas a ordem temporal do acontecimento da criação. Isso não me parece se aplicar à emanação. Por isso, os pensadores cristãos normalmente – embora nem sempre – evitam a palavra “emanatio” (tradução latina de “aporrhoe”).
IDEM "De toda maneira, a minha intenção era dizer que é possível conceber o Big Bang sem recorrer ao criacionismo, pois o Big Bang não precisa ser tido como um começo absoluto."
EG - Pois é, eu queria saber o que é mais irracional, a idéia de um universo sem começo ou a da criação-emanação -- que, aliás, não implica um começo no tempo!
AC - Não vejo absolutamente nada de irracional na idéia de um universo infinito em todas as suas dimensões: espacial, temporal etc.
IDEM - "Você tem razão ao dizer que nem a tese de que o universo teve um começo absoluto nem a tese de que jamais teve começo são científicas: podemos considerá-las metafísicas; mas a verdade é que a primeira, além de metafísica, tem grande afinidade com a religião."
EG - E qual é o problema? Parece-me que você quer evitar a todo custo qualquer afinidade com a religião. Mas isso é impossível, pois deus sempre foi um dos maiores temas e problemas filosóficos, senão o mais importante deles [como mostra Weischedel]. Agora, do fato de a religião ter afinidade com idéias filosóficas não se segue que essas idéias sejam elas mesmas religiosas. Não são. Muito menos monoteístas.
AC – No caso presente, meu problema não é com a religião, mas com a confusão entre esta e a ciência. O problema existe quando as teses religiosas interferem com a ciência. Ao contrário de você, penso que a teoria da evolução não é menos científica do que a física, por exemplo. E a evolução de que essa teoria fala não é evolução intraespecífica, mas evolução de uma espécie para outra. Ora, as religiões criacionistas têm problemas com isso.
Abraço,
ACicero
AC – Pelo menos no terreno do monoteísmo se entra. O fato de que o “deus neoplatônico” é no fundo o Um não torna o neoplatonismo o monoteísmo por excelência?
ResponderExcluirEG - Sim e não, uma vez que, para Plotino, não se trata de um deus pessoal.
AC - Outra questão: quando se fala em criação, normalmente se entende creatio ex nihilo, onde esse “ex”, como dizia Tomás de Aquino, não indica a origem, mas a ordem temporal do acontecimento da criação. Isso não me parece se aplicar à emanação. Por isso, os pensadores cristãos normalmente – embora nem sempre – evitam a palavra “emanatio” (tradução latina de “aporrhoe”).
EG - Pois é, eu estou tentando mostrar que há outras maneiras de se entender a criação além da versão católica oficial, por assim dizer. Os anticriacionistas voltam as suas forças apenas contra os fundamentalistas. Criacionismo, para mim, significa que o universo não obteve o seu ser de si mesmo e não existe por si mesmo.
AC - Não vejo absolutamente nada de irracional na idéia de um universo infinito em todas as suas dimensões: espacial, temporal etc.
EG - Se o universo não fosse material, sim. Mas não me parece racional supor uma matéria sem começo nem fim.
AC – No caso presente, meu problema não é com a religião, mas com a confusão entre esta e a ciência. O problema existe quando as teses religiosas interferem com a ciência.
EG - Concordo, mas acho que o problema não se deve apenas aos religiosos. Até que ponto os evolucionistas não estão defendendo teses pseudo-científicas, "religiosas"?
AC - Ao contrário de você, penso que a teoria da evolução não é menos científica do que a física, por exemplo.
EG - Você é o primeiro que ouço dizer isso. A biologia avançou muito, mas não me parece que tenha chegado lá.
AC - E a evolução de que essa teoria fala não é evolução intraespecífica, mas evolução de uma espécie para outra.
EG - A teoria sintética da evolução trata das duas evoluções, e muitas vezes os evolucionistas nem distinguem uma da outra, o que provoca uma grande confusão.
AC - Ora, as religiões criacionistas têm problemas com isso.
EG - Há religiosos que estão tranqüilos quanto a essa questão. Eles dizem, por exemplo, que a teoria da evolução se refere à matéria, ao corpo, e que a religião se refere à alma: o corpo do homem pode ter-se originado de corpos de outra espécie, mas o que interessa, a alma, não -- essa foi criada por Deus e insuflada por Ele no primeiro corpo animal em condições de recebê-la, Adão. As coisas são muito mais complexas do que os cientistas cientificistas, portanto "religiosos", imaginam. Refutar o criacionismo fundamentalista é perda de tempo. Aliás, em vez disso, por que não gastam seu tempo tentando refutar Swiburne e Plantinga, por exemplo?
Abraço,
EG
AC - Quando se fala de criação, sobrenaturalidade e Deus, entra-se no terreno das religiões monoteístas.
ResponderExcluirEG - De modo algum! Pelo menos não exclusivamente. O deus neoplatônico, p.ex., é ao mesmo tempo natural, ou imanente, e sobrenatural, transcendente. Não preciso defender literalmente a criação bíblica para ser criacionista.
AC - Pelo menos no terreno do monoteísmo se entra. O fato de que o “deus neoplatônico” é no fundo o Um não torna o neoplatonismo o monoteísmo por excelência?
EG - Sim e não, uma vez que, para Plotino, não se trata de um deus pessoal.
AC - De toda maneira, a minha intenção era dizer que é possível conceber o Big Bang sem recorrer ao criacionismo, pois o Big Bang não precisa ser tido como um começo absoluto.
EG - Pois é, eu queria saber o que é mais irracional, a idéia de um universo sem começo ou a da criação-emanação -- que, aliás, não implica um começo no tempo!
AC - Não vejo absolutamente nada de irracional na idéia de um universo infinito em todas as suas dimensões: espacial, temporal etc.
EG - Se o universo não fosse material, sim. Mas não me parece racional supor uma matéria sem começo nem fim.
AC - No entanto, quase toda a filosofia não-cristã sempre supôs uma matéria sem começo nem fim. E, dado o princípio “ex nihilo nihil fit”, a racionalidade da criação é que sempre foi posta em questão. Não será excessivamente restritiva a sua concepção de matéria?
AC - As religiões criacionistas têm problemas com a teoria da evolução.
EG - Há religiosos que estão tranqüilos quanto a essa questão. Eles dizem, por exemplo, que a teoria da evolução se refere à matéria, ao corpo, e que a religião se refere à alma: o corpo do homem pode ter-se originado de corpos de outra espécie, mas o que interessa, a alma, não -- essa foi criada por Deus e insuflada por Ele no primeiro corpo animal em condições de recebê-la, Adão.
AC – Isso já é um exemplo da interferência da religião no campo da ciência. Como poderia a teoria da evolução aceitar a priori o dogma dualista da separação total entre corpo e alma? Como poderia aceitar até que as coisas fossem a priori postas em termos de “corpo” e “alma”? Como poderia deixar de investigar fenômenos que se encontrassem, à primeira vista, no domínio da “alma”?
EG - Refutar o criacionismo fundamentalista é perda de tempo. Aliás, em vez disso, por que não gastam seu tempo tentando refutar Swiburne e Plantinga, por exemplo?
AC - Francamente, não acho muito impressionantes nem os argumentos de um nem do outro. Eles, aliás, estão postados no site do Dawkins (http://richarddawkins.net/).
AC - De toda maneira, a minha intenção era dizer que é possível conceber o Big Bang sem recorrer ao criacionismo, pois o Big Bang não precisa ser tido como um começo absoluto.
ResponderExcluirEG - Não precisa, claro. O que é preciso, então, é toda uma metafísica que explique a perenidade da matéria e, além disso, por que e como dessa matéria caótica possam surgir o cosmo, a vida em geral e a vida inteligente. Só isso.
AC - No entanto, quase toda a filosofia não-cristã sempre supôs uma matéria sem começo nem fim. E, dado o princípio “ex nihilo nihil fit”, a racionalidade da criação é que sempre foi posta em questão. Não será excessivamente restritiva a sua concepção de matéria?
EG - Pode ser, mas com certeza não mais do que a da ciência. Aliás, quase toda a filosofia, cristã e não-cristã, sempre achou que existe mais alguma coisa além da matéria, separadamente dela ou em união com ela. Mas, para a ciência, a não-matéria não existe, não passa de um epifenômeno da matéria. Acho que não vale recorrer à história da filosofia para defender --ad hoc-- a ciência.
AC – Isso já é um exemplo da interferência da religião no campo da ciência. Como poderia a teoria da evolução aceitar a priori o dogma dualista da separação total entre corpo e alma? Como poderia aceitar até que as coisas fossem a priori postas em termos de “corpo” e “alma”? Como poderia deixar de investigar fenômenos que se encontrassem, à primeira vista, no domínio da “alma”?
EG - Eu não vejo interferência alguma. A ciência não tem de aceitar nada. Assim como não tem de impor nada à religião. Uma não tem absolutamente nada que ver com a outra. Deus não pode ser provado nem refutado. Chega a ser ridícula a pretensão dos Dawkins nesse sentido. Só mostram que não entendem nada do que está em jogo. A ciência só lida com causas, das quais pode ter um conhecimento objetivo apenas aproximado, conjectural. Deus, a razão, o uno, o ser, ou seja lá como se chame a origem de tudo não é uma causa entre outras e não pode ser conhecido objetivamente.
AC - Francamente, não acho muito impressionantes nem os argumentos de um nem do outro. Eles, aliás, estão postados no site do Dawkins (http://richarddawkins.net/).
EG - Eu não disse que o Dawkins não tomou conhecimento dos argumentos desses autores, disse que ele não os refutou. Na verdade, nem os entendeu. Argumentos não têm de ser impressionantes, têm de ser convincentes, ou seja, válidos e sólidos.
EG - Refutar o criacionismo fundamentalista é perda de tempo. Aliás, em vez disso, por que não gastam seu tempo tentando refutar Swiburne e Plantinga, por exemplo?
ResponderExcluirAC - Francamente, não acho muito impressionantes nem os argumentos de um nem do outro. Eles, aliás, estão postados no site do Dawkins (http://richarddawkins.net/).
EG - Eu não disse que o Dawkins não tomou conhecimento dos argumentos desses autores, disse que ele não os refutou. Na verdade, nem os entendeu. Argumentos não têm de ser impressionantes, têm de ser convincentes, ou seja, válidos e sólidos.
AC - Mas é justamente isso que eles não são. Coisa que, aliás, me deixou impressionado. Li o livro do Dawkins e, graças a você, li também as críticas tanto de Plantinga quanto de Swinburne. Como você supõe que os argumentos deles são convincentes, ouso apostar que você desdenhou ler o livro do Dawkins. Se o tivesse livro, não creio que pensasse assim. Não que os argumentos do Dawkins sejam muito sólidos. Eu mesmo não aceito o principal. Mas é que os argumentos de Plantiga e de Swinburne são ainda mais primários e sofísticos. Deixe-me falar de Plantinga, que você mesmo considera mais forte. Vou falar apenas de uma questão, como exemplo (no que toca a outras questões, como a da “sintonia fina” do universo e do princípio antrópico, deve-se dizer que ou bem Plantinga não sabe do que está falando ou bem está de má fé).
O argumento de Dawkins é o seguinte. Os advogados da tese do design alegam que o mundo, a vida, o ser humano etc. são muito complexos, de modo que não podem ter sido produzidos pelo acaso. Disso, concluem que elas devem ter sido produzidas por um designer: Deus. Dawkins concorda que coisas tão complexas não podem ter sido produzidas pelo mero acaso; mas também nega a possibilidade do designer, ponderando que o designer de alguma coisa há de ser mais complexo do que a coisa que projetou: de modo que será ainda mais difícil explicá-lo, sem cair em regressio ad infinitum. Posso imaginar muitos argumentos contra a tese de Dawkins; mas qual é o de Plantinga? Afirmar que, para a teologia, Deus não é complexo, mas simples. Ou seja, ele emprega a palavra “complexo” num sentido diferente daquele em que Dawkins a emprega; isto é, ele lança mão de um sofisma, de um argumento puramente verbal. O raciocínio de Dawkins não precisa da palavra “complexo”. Ele poderia ter usado outra. O que, à son insu, ele está afirmando é um princípio aristotélico, formulado por Tomás de Aquino como “causa est potior causato”, a causa mais do que o causado, a forma contém mais do que o efeito. Tomás diz também: “effectus non est potior sua causa”, o efeito não é mais, não contém mais, do que a sua causa. Por que? Porque ela contém ao menos toda a forma do causado. Pois bem, Tomás usa esses princípios exatamente em relação à criação e a Deus.
Caro ACicero,
ResponderExcluirO problema do Plantinga, do Swinburne e de outros filósofos analíticos é que eles acabam fazendo o jogo dos cientificistas: provar deus logica e objetivamente. Mas isso é impossível. O que virtualmente todas as autênticas religiões e tradições espirituais da humanidade afirmam é que o universo resulta de um processo de involução, de uma "queda". Curisosamente não encontrei ainda um argumento evolucionista contra o princípio da entropia [se é possível conciliar o princípio entrópico com o antrópico, isso é outra questão]. Para mim a coisa toda é bem simples: a religião não tem de provar nada, nem Deus nem a alma, nada. Ela parte dessas pressuposições simplesmente como realidades dadas. E essas pressuposições não são teses de um sistema teórico, dialético, mas simplesmente elementos de uma doutrina de salvação. O debate dos Dawkins, se existe, não é com os religiosos mas com os cientistas, filósofos e certos teólogos. Repito: a ciência é incapaz de afirmar a existência ou a inexistência da alma e de deus. O argumento do Dawkins mostra claramente essa incapacidade: deus não pertence à mesma ordem das causas das coisas, do universo, como se fosse uma primeira causa mais simples. Toda essa nossa conversa se deveu ao fato de esses cientistas célebres pretenderem substituir a religião pela ciência, o que é uma tolice sem tamanho. E até agora você não disse claramente o que pensa a respeito: a ciência pode ou não eliminar deus e a alma? Abraço, edg
Caro Edson Gil,
ResponderExcluirPretendo explicar melhor a minha posição no meu próximo artigo na Folha, mas, desde já, adianto que concordo com você nesse ponto: as áreas de competência da ciência e da religião não coincidem. Essa é, aliás, a tese do McGrath (para cuja entrevista na Veja você me chamou atenção), que é tanto cientista quanto religioso. Mas, como também o McGrath reconhece, o problema não é só de que alguns cientistas pretendam substituir a religião pela ciência, mas de que alguns religiosos pretendem fazer ciência a partir da revelação.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Antonio Cicero,
ResponderExcluirEntão estamos de acordo em discordar de Dawkins e Dennett e em concordar com McGrath. Como disse em algum lugar, creio que a ofensiva dos fundamentalistas possa, em boa parte, ser explicada como reação ao ateísmo militante pseudocientífico [= cientificista] desses autores. Se a ciência não tem competência para tratar de temas religiosos, teológicos e metafísicos, tais como deus e a alma, então o programa desses cientistas de substituir a religião por supostos conhecimentos científicos perde todo sentido.
No meu entender, teses religiosas e teológicas não podem, por sua vez, funcionar como hipóteses científicas. Já quanto às filosóficas, não tenho tanta certeza.
Enfim, gostaria de ratificar a minha opinião segundo a qual Dawkins e Dennett são eles mesmos, pelo menos em parte, culpados pelo recrudescimento do fundamentalismo criacionista: quanto mais eles pretenderem substituir crenças religiosas por crenças supostamente científicas, mais os fundamentalistas pretenderão transformar crenças religiosas em hipóteses científicas ou rivais a estas.
Abraço e muitíssimo obrigado pela atenção e pela cordialidade!
Edson Gil
Caro Edson Gil,
ResponderExcluirComo era de se esperar, concordamos em alguns pontos, mas não em outros. Acho que há coisas sobre as quais talvez nunca venhamos a concordar. Primeiro, embora, como já disse, eu pense que a ciência não tem competência para determinar, por exemplo, se Deus existe, isso não quer dizer que eu ache que o livro do Dawkins não contenha muitas informações interessantes ou que não faça algumas críticas bastante contundentes a várias estratégias, iniciativas, tendências e personalidades religiosas: críticas, em outras palavras, à política religiosa. Como afirmei no artigo que estamos a comentar, trata-se de um livro desigual mas que merece ser lido. Segundo, os ataques dele à religião não são gratuitos, pois ele é um biólogo e a biologia tem que lutar para preservar a sua autonomia em relação às interferências religiosas e políticas.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Cicero,
ResponderExcluirNão discordo de você, não. Eu mesmo publiquei vários posts de e sobre Dawkins e Dennett e meus blogs. Só acrescento que os religiosos também têm o direito de tentar preservar a sua fé dos ataques muitas vezes improcedentes dos cientistas. Não defendo os religiosos em geral nem condeno os cientistas em geral. A religião pode ser bem diferente do que aquela criticada e combatida por Dawkins, p.ex. Assim como os cientistas não têm de ser ateístas militantes.
Abraço,
edg
Impossível passar indiferente a essa conversa sua com o Edson Gil, Cicero. Tenho fuçado avidamente o seu blog e ele sempre me surpreende e me traz uma alegria bastante similar àquela que me ocorre qdo estou tateando numa livraria e o acaso me apresenta um livro arrebatador.
ResponderExcluirParabéns!
Aetano