23.4.07

A tese de Ivan Karamazov

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na Folha de São Paulo, sábado passado, 21 de Abril de 2007:
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A TESE DE IVAN KARAMAZOV
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Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar a ética

VOLTA E meia alguém traz novamente à tona a famosa tese de Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Acho que muita gente acredita piamente nela e atribui à irreligiosidade da população a constante e inquietante alta dos índices de criminalidade. Será talvez com a intenção de baixar esses índices que os donos ou editores das revistas brasileiras de circulação nacional raramente deixam passar uma semana sem que, ao menos numa das suas revistas, façam propaganda, numa reportagem de capa, da fé e da religiosidade dos brasileiros.

Ora, a tese do personagem de Ivan não resiste a um simples experimento de pensamento. Suponha que me apareça Deus e me ordene matar o meu filho (ou mãe, ou pai, ou irmão, ou amante, ou amigo). Que faria eu? Ponha-se o leitor na minha pele. Não tenho dúvida de que a minha primeira reação -a primeira reação de qualquer pessoa que não tivesse perdido o juízo- seria duvidar do que parecia estar vendo e ouvindo. Eu me beliscaria, para saber se não estava sonhando; suspeitaria estar tendo um surto de loucura, um delírio etc.

Aquilo simplesmente não poderia estar acontecendo. E não poderia estar acontecendo por duas razões: primeiro, porque Deus não costuma aparecer, pelo menos hoje em dia. Quando alguém diz que conversou com Deus -ainda que quem o diga seja o presidente dos Estados Unidos-, suspeita-se imediatamente da sua sanidade mental. De todo modo, eu não obedeceria.

Mas a segunda razão é ainda mais séria. É que, se isso estivesse realmente acontecendo, então Deus me estaria mandando fazer uma coisa má: uma coisa inteiramente, indiscutivelmente, inapelavelmente errada. Ora, não posso contemplar tal hipótese. Logo, isso não poderia estar acontecendo. Eu pensaria antes que, ou não havia ninguém ali, e eu estava simplesmente a delirar, ou havia alguém de fato ali, mas se tratava de um impostor -talvez até de um demônio-, mas não de Deus, pois seria impensável que Deus me mandasse fazer uma coisa errada: e que coisa poderia ser mais errada do que aquela? Em suma, eu não obedeceria.

Mas levemos a coisa ainda mais longe. Suponhamos que, por alguma razão inconcebível, fosse incontornável a evidência de que ali se encontrava Deus. Ouso dizer que, ainda assim, eu não mataria meu filho ou amigo: eu não mataria sequer um estranho. Por quê? Porque seria errado. E seria errado, não por causa dos mandamentos que o próprio Deus decretara, uma vez que, naquele instante, Ele mesmo os estaria revogando, mas simplesmente porque, independentemente de qualquer mandamento, é errado matar uma pessoa. É, portanto, errado matar uma pessoa, ainda que Deus não exista. Logo, ao contrário do que afirma a tese do personagem de Dostoiévski, nem tudo é permitido, ainda que Deus não exista.

O leitor terá sem dúvida lembrado que, na Bíblia (Gn 22), Abraão se encontrou na situação em que me imaginei no experimento de pensamento. Com efeito, Deus pôs Abraão à prova, ordenando-lhe que matasse o seu filho primogênito. Ao contrário de mim (e do leitor que se pôs na minha pele), Abraão se dispôs a obedecer e, quando já havia pegado a faca para sacrificar seu filho, foi impedido por um anjo, enviado por Deus.

Como se sabe, foi sobre esse episódio que Kierkegaard escreveu as páginas impressionantes de "Temor e Tremor". Nelas, ele mostra que, do ponto de vista puramente ético, não se justificaria a prontidão de Abraão. Só a fé -superior, segundo Kierkegaard, à ética, por constituir uma relação individual e absoluta com Deus- justifica a atitude de Abraão. Desse modo, graças à religião, a esfera da ética é relativizada pela da fé.

Sendo assim, devemos inverter a tese de Ivan Karamazov: não só não é verdade que, se Deus não existe, tudo é permitido -já que, como vimos, não é permitido matar-, mas, ao contrário, é se Deus existir que tudo é permitido.

Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar e, no limite, negar a ética. Isso lembra as palavras do físico norte-americano Steven Weinberg, detentor do Prêmio Nobel de Física: "Com ou sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as pessoas mal-intencionadas farão o mal; mas, para que as pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião".

9 comentários:

  1. Perdido no mundo...o Homem precisa exercer a sua Liberdade...do Ser da Consciência e de Outro...
    Gente morrendo queimada...as Religiões não seriam o "ultimo suspiro"antes da Noite definitiva?
    Por que então,as religiões a busca dos "deuses" e do Sagrado,aumenta em velocidade des-proporcional no mundo e nos acontecimentos contemporâneos??

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  2. Antonio, ninguém, em sã consciência mataria. A questão é não pontuar como errado tal (des)feito. Quem "erra", tentou. E nem por isso o resultado, positivo ou negativo, consiste num "erro". E se ninguém em sã consciência - religiosa ou não - mata, tomando por são aquilo que é sadio, acho que o terreno é das patologias mais do que da religiosidade, falta dela, ou de ser/ estar certo ou errado.

    A própria religiosidade consiste numa tentativa errônea (-não errada-) de manipular massas incutindo-lhe (pré, pós, ante, durante) conceitos. No fundo, acho que ao acerto e ao erro cabe premeditação, e fazemos coisas "erradas", na maioria das vezes, sem intençao alguma... Se Deus existir dentro da concepção de "Deus" que temos, ele é a intenção. Não passa disso.

    Um beijo,

    PS: Karamazov "revisitado", talvez, diria "Se você existe, tudo é permitido", e emendaria "Mas arque com as consequências".

    Aliás, esse deveria ser (se não é), o princípio da ética: ver o futuro, não como profeta, mas como observador dos resultados. Uma espécie de operador de BMF comportamental.

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  3. Sobre o que disse o Pedro, acima, coloco o que penso, abaixo.

    As religiões são o último desvio antes da noite definitiva, e tem gente buscando por elas, de maneira quase insana, atrás do sagrado que têm dentro de si.

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  4. Caro Antônio,

    Fico feliz em ver seu artigo. Acho bastante pertinente esclarecer certas questões sobre razão e fé, num momento histórico em que questões de cunho religoso alimentam tantos conflitos. Perdi a conta de quantas vezes ouvi essa tese, tão bem refutada por você, com argumentos de fácil assimilação.

    Devo contudo, discordar da parte final, em especial do ilustre cientista citado. Não é apenas a religião que é capaz de levar pessoas boas a cometer o mal. Muitos fatores podem contribuir para tal. De fato, a causa preponderante nesse caso é a escolha individual. Discordo da idéia de que "ninguém mataria em sã consciência", acho mais adequado dizer que "ninguém, em sã consciência, mataria sem saber que está fazendo algo definitivamente errado". A religião pode, em alguns casos particulares, dar pretexto para que seja feito o mal, mas é o indivíduo que escolhe fazê-lo, e poderia escolher mesmo que não tivesse religião. Contudo, é claro que, no exemplo proposto, apenas a idéia de uma ordem divina poderia dar esperança ao criminoso de livrar-se da responsabilidade por seus atos.

    Com relação aos outros comentários, acredito que há valor na espiritualidade e na religião, e que o crescimento desses fenômenos vem do reconhecimento, mesmo que em muitos casos inconsciente, de que as relações de produção e consumo não são capazes de satisfazer todas as necessidades humanas. Porém, isso não justifica uma negação absoluta de tudo o que constitui as sociedades modernas, num fundamentalismo retrógrado, visando a volta a algo que nem mesmo sabemos o que seria. Não há nada de errado em promover um renascimento de valores relativamente abandonados na história recente, mas fazer a roda do tempo andar para trás é impossível.

    Um abraço,
    Lucas

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  5. Cicero, se deus existisse, alguém teria que reinventá-lo, hã?!??... Abraço

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  6. O seu argumento só faz sentido se se tratar do Deus pessoal da religião. Mas se se tratar do Absoluto, não. Se não houvesse o Absoluto, tudo seria relativo e, por conseguinte, tudo também seria permitido. Em tempo: o Deus pessoal das religiões, ou melhor, de algumas religiões, no fundo é uma hipostasiação antropomórfica do Absoluto ou "divindade impessoal".

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  7. Caro Edson,

    Pela razão que expus ao responder o seu comentário anterior (postagem de 02/09), não poderei lhe responder agora. Mas dê uma olhada na entrevista que dei a Washington Castilhos (postagem de 24/05), em que toco, de raspão, no assunto de que você fala. Quarta feira lhe responderei melhor.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  8. Caro Edson,

    Só agora, depois da viagem a Belém e de finalizar alguns trabalhos ao retornar, estou livre para responder aos seus comentários. Sobre a questão da diferença entre o Deus pessoal da religião e o Absoluto, falo no quinto capítulo (§ 23) de O mundo desde o fim. Acredito que você ainda não o tenha lido. Cito-o:


    Como percebe Pascal, o deus cuja existência teria sido provada por Descartes não era o Deus da religião, não era o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó ou o Deus dos cristãos. O Dieu des philosophes é outro. É a conclusão a que também Friedrich Jacobi chega. Ele conta que, impressionado com a observação de Leibniz de que "o spinozismo não passa de cartesianismo exagerado", resolveu ler a Ética, tentando entender melhor a prova ontológica da existência de Deus, proposta por Descartes. Spinoza não o decepcionou: entretanto Jacobi entendeu não apenas a prova ontológica da existência de Deus como também para que tipo de Deus essa prova era válida. "É para mim cada vez mais claro", diz ele, “que a mera religião da razão é uma pura idolatria que tem que caminhar necessariamente para o ateísmo. O Deus dos deístas não é senão a razão humana idolatrada, seu ideal. A razão humana diluida em seu elemento é o nada. Seu ideal, por conseguinte, é o nada”. Jacobi está certo, é claro. A apócrise nos ajuda a entendê-lo. Os atributos de Deus, como a infinitude e a eternidade, pertencem à negação negante, que nada é. Não é possível atribuí-los a um deus pessoal como o deus bíblico. "Há não sei que fatalidade", diz Pierre Bayle, “que é causa de que quanto mais raciocinamos sobre os atributos de Deus de acordo com as noções mais sublimes da Metafísica, mais nos encontramos em oposição a numerosas passagens da Escritura”. A apócrise nos ensina que ou afirmamos que Deus é infinito, eterno, absoluto, essencial, necessário etc.: mas um tal Deus, feito a negação negante, não pode existir, de modo que em nada difere do nada; ou afirmamos a existência de um deus positivo e pessoal, como o da Bíblia: mas nesse caso ele não pode deixar de ser finito, temporal, relativo, acidental, contingente etc.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  9. No primeiro comentário que fiz aqui no seu Blog registrei meu contentamento pelas afinidades com você, com seu modo de pensar, Antonio Cícero.
    A propósito, no meu esboço de livro ocupo-me da questão de que você trata aqui, da seguinte forma:

    Deus é também nome de um componente de raciocínio sobre o inescrutável momento zero de tudo; neste sentido, o fato dele existir ou não é irrelevante. De outra parte, conforme disse Diderot em carta a Voltaire, ‘é muito importante não confundir alhos com bugalhos, mas não é importante crer ou não crer em Deus’. Curiosamente, é de autoria do genial ‘pontífice da impiedade’ uma das frases mais eficientes em defesa da existência de Deus: Se Deus não existisse seria preciso inventá-lo. Assim, comparado com o voltairiano, o desempenho do devoto Dostoiévski, na pele de Ivan Karamazov, foi precário neste caso: Se Deus não existe, tudo é permitido. – Enquanto juiz, condição que o autor russo certamente tinha em mente ao formular este princípio, Deus é um complexo psicológico ao qual denominamos remorso ou sentimento de culpa. Quanto a Voltaire, sua intenção foi claramente corroborar a tese de que o componente Deus é indescartável da nossa cultura, concordar que liberar seu culto é necessário à harmonia social. – Mais lúcido do que os dois, e conforme citado anteriormente, Nietzsche achava que um Deus seria plausível se pudesse ser comprovado sem que uma necessidade [incluída a necessidade metafísica] o mostrasse para nós como necessário.

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