13.4.07

Comentário de Lucas Nicolato e resposta

Lucas Nicolato deixou um comentário, que publico, seguido da minha resposta:

Meus questionamentos anteriores concentraram-se na idéia de que, tendo surgido em determinada sociedade, a “modernidade” seria tão local quanto a própria cultura daquela sociedade. Ora, mesmo que a “modernidade” que conhecemos fosse produto da cultura cristã, sua genealogia não a condenaria a ser “mero” aspecto da cultura local. Embora talvez não seja possível sua manifestação em um ambiente em que não haja língua ou cultura, a capacidade humana de crítica nem por isso deixa de ser uma realidade por si só, nem perde suas características. De fato, a modernidade é “um” salto para o universal, e ainda seria, mesmo que só pudesse ser produzida em condições locais muito específicas. Nesse sentido, não apenas concordo com sua resposta, como me arrisco a tomar suas idéias de forma radical.Não obstante, há ainda algo que julgo fazer sentido na expressão “fundamentalismo iluminista” e que está relacionado à nossa discussão. Se a modernidade, como o pleno uso da razão, não se confunde com uma cultura específica, como o Islã, e se a razão pode se expressar através de quaisquer línguas ou meios culturais, tal fato não exclui sua imagem inversa: a de que as crenças específicas de uma sociedade podem se manifestar através do uso da razão e do valor dado a ela. Mais especificamente, me questiono se o papel preponderante dado ao “salto universal” (ou a esse salto em particular, pois nada garante que não haja outros saltos) em nossa cultura tem algo de universal. Está claro que a capacidade de crítica e abstração pode ser desenvolvida em diversos ambientes culturais, mas isso não significa que o valor dado ao uso dessa razão não seja uma construção cultural particular. Creio que o autor do artigo referia-se a uma suposta atitude arrogante frente ao fato de que outras culturas podem simplesmente não se importar tanto com a modernidade quanto a nossa. Tal atitude não seria propriamente “moderna”, mas fundamentalista, na medida em que toma um julgamento particular (o uso da razão é de importância máxima) em uma verdade presumidamente universal que pode, portanto, ser imposta a outrem. Claro, um “fundamentalismo iluminista” é profundamente contraditório e irracional, mas isso não impede que seja adotado por determinadas pessoas.


Resposta minha:

Não creio que a sua tentativa de salvar a expressão “fundamentalismo iluminista” possa escapar das aporias do relativismo cultural, nas quais eu havia tocado, ao falar da insustentabilidade da tese multiculturalista de Ash. O fundamentalismo iluminista consistiria, segundo você, em tentar impor a modernidade ou a razão a culturas para as quais elas não tenham tanta importância quanto para a nossa. Você parte de dois pressupostos. O primeiro é o de que uma cultura não deve impor os seus valores a outras: o de que é preciso respeitar os valores particulares das diferentes culturas. O segundo é o de que a modernidade/razão tem mais importância para a nossa cultura do que para outras.

Concordo com o seu primeiro pressuposto. Há, porém, um problema que você não me parece ter suficientemente levado em conta, isto é, a determinação do status desse pressuposto mesmo. Ele pertence a uma das culturas particulares ou é, como afirmei no artigo sobre Ali e Ash, exterior, anterior e superior a elas?

Se ele pertencer a uma das culturas em jogo – digamos, à “cultura ocidental” --, então, de fato, ele não pode, segundo seus próprios pressupostos, ser imposto senão a essa mesma cultura: ser auto-imposto. Ele poderá, porém, ser negado por outras culturas, que se afirmem superiores às demais. Aqui não estou falando de uma hipótese abstrata. Os fundamentalistas islâmicos não raro se reportam a uma sura do Alcorão que diz: “Matai os idólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai de emboscadas contra eles”. Adicione-se que, para eles, os principais idólatras de hoje são precisamente os ocidentais modernos. Veja o resultado: o relativista, para não ser chamado de “fundamentalista do iluminismo”, se proíbe de criticar o fundamentalista muçulmano; este, porém, permite-se, com boa consciência, usar contra aquele não apenas as armas da crítica, mas a crítica das armas... Como diz o físico Steven Weinberg, “com ou sem religião haverá pessoas boas fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. Mas que as pessoas boas façam coisas más, só a religião consegue”.

Para que tenha alguma eficácia, portanto, o seu pressuposto tem que ser exterior (ele não pode fazer parte desta ou daquela cultura, mas da modernidade/razão, que está fora de todas elas), anterior (como uma constituição, ele precisa limitar a priori a soberania da cultura em questão: a sura mencionada, por exemplo, não pode ser interpretada de modo literal ou fundamentalista) e superior (como uma constituição, ele precisa anular qualquer disposição contrária às suas determinações).

Sem dúvida você considerará justamente tal afirmação da modernidade/razão como exterior, anterior e superior a qualquer cultura como algo que pertence à nossa cultura, e que não temos direito de exportar, sob pena de nos tornarmos “fundamentalistas do iluminismo”. Com efeito, segundo você, “outras culturas podem simplesmente não se importar tanto com a modernidade quanto a nossa”. Aqui chegamos ao seu segundo pressuposto, com o qual não concordo.

O problema é o que você quer dizer com “nossa” cultura? O Cristianismo? Você se esquece das guerras religiosas do Cristianismo? Acontece que a razão/modernidade se desenvolveu apesar do Cristianismo, e contra ele. Não foi o Cristianismo que relativizou a si mesmo; nenhuma cultura relativiza a si própria. Essa relativização foi feita pela razão/modernidade, que não é uma cultura e se encontra fora da “nossa” e de todas as demais culturas. Como eu já disse no texto anterior, ela não surge de qualquer cultura, mas do desvio, da crítica, da separação, levada a cabo por alguns indivíduos, em relação à cultura em que foram criados.

Não é, portanto, que a nossa cultura tenha adotado a razão/modernidade. É que a razão/modernidade trava, há séculos, uma luta titânica com a nossa – e com toda – cultura particular, para estabelecer regras tais como o seu primeiro pressuposto: de que uma cultura não deve impor os seus valores a outras, de modo que é preciso respeitar os valores particulares das diferentes culturas. Mas isso, como eu disse, só pode ser feito a partir do reconhecimento universal (não pelas culturas, mas pelos indivíduos, pelas sociedades e pelos Estados e organismos internacionais) de que a razão/modernidade não é uma cultura particular: de que ela é exterior, anterior e superior a qualquer cultura particular.

6 comentários:

  1. Caro Antônio,

    Mais uma vez agradeço sua atenção e boa vontande em prestar esclarecimentos sobre esse assunto tão interessante. Sinto que estamos chegando ao âmago da questão, ou melhor, que eu estou começando a alcançar esse amâgo, porque você aparentemente já se encontra lá há algum tempo.

    Sou obrigado a concordar com suas observações. Creio que a dificuldade deve-se principalmente ao uso pouco preciso, por minha parte, de alguns termos. Quando digo "nossa cultura" refiro-me à cultura que vem se desenvolvendo no "mundo ocidental", em especial nos países em que se verifica a existência de um Estado Democrático de Direito. Embora vivam, ao menos teoricamente, sob normas regidas pelo uso da razão, tais sociedades desenvolvem conjuntos de valores e crenças coletivas que não derivam diretamente do pensamento racional. Entre tais valores, encontra-se a defesa de idéias iluministas, que podem coincidir com verdades racionalmente estabelecidas, sem que, contudo, quem as defenda o faça com base na razão. Isto é, mesmo que uma verdade possa ser demonstrada verdadeira, é possível crer nela de forma irracional. Assim, mesmo quem não pratica o Iluminismo pode ter a atitude irracional de tentar impor esse conjunto de idéias, até mesmo ultrapassando todos os limites impostos pelo próprio raciocínio lógico. Em outras palavras, a cultura também tenta apropriar-se da razão e usá-la para seus próprios fins, mesmo que para isso seja preciso torcê-la contra si própria. Um exemplo disso seria o conceito, já atacado por você em outro artigo, de que a tortura seria razoável se aplicada contra o terrorismo. Eu diria que a política militar do governo Bush também é um bom exemplo. Não se pode admitir que, na intenção de defender a modernidade, sejam utilizados métodos contrários a ela própria, como agir de forma unilateral e contrária às constituições dos Estados e dos organismos internacionais, ou atentar contra os direitos humanos. A falta de valor dada por outros povos à modernidade pode não escusá-los da obrigação de agir dentro dos limites razoáveis, mas também não nos autoriza a intervir além desses mesmos limites.

    Tenho que admitir a infelicidade da expressão "fundamentalismo iluminista". Mais apropriado talvez fosse "fundamentalismo sob falso pretexto iluminista". Não conheço a obra da autora citada para classificar sua obra de fundamentalista ou não, mas me parece que um fundamentalismo disfarçado de razão é um perigo tão real quanto o do fundamentalismo religioso.

    Um abraço,
    Lucas

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  2. Caro Lucas,

    entendo o que você diz. O presidente Bush, em determinado momento, afirmou que, entre as razões para invadir o Iraque, encontrava-se a defesa dos direitos humanos e da democracia contra um ditador sanguinário. Na época, qualquer desculpa lhe servia, e ele estava apenas explorando o fato de que Saddam realmente era um ditador sanguinário. Mas já então era evidente que os direitos humanos nada tinham a ver com a invasão do Iraque. A quadrilha que se encontra no poder nos Estados Unidos mente mais do que aquela que, no Brasil, foi chefiada pelo presidente Collor. Seja como for, essa mentira de Bush jamais foi o principal pretexto para invadir o Iraque. O principal eram as tais armas nucleares que nunca existiram. E, como Bush sistematicamente ignora os direitos humanos – e corre até o risco de algum dia ser julgado por uma corte internacional, para responder pelo crime de tê-los violado – estes nunca mais foram mencionados por ele. De todo modo, pessoas obscurantistas e corruptas como Bush, Cheney ou Rumsfeld não deveriam ser chamadas de “fundamentalistas do iluminismo” apenas porque um dia, com propósitos excusos, hipocritamente ousaram mencionar os direitos humanos. A menos que chamássemos de defensor da moral e dos bons costumes um prostituto profissional que, tendo assassinado e roubado um cliente, alegue que o fez por ter-se sentido moralmente ultrajado.

    Um abraço,
    Antonio Cicero

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  3. Caro Antônio Cícero,

    Acho que chegamos a um acordo. Obrigado pela conversa estimulante. Continuarei de olho no "Acontecimentos", para aproveitar novas discussões filosóficas, políticas e poéticas.

    Um abraço,
    Lucas

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  4. Caro Cicero,

    De um modo geral, tendo a concordar com seus argumentos, especialmente na crítica à idéia de que não se deve criticar as posições de uma outra cultura. Só gostaria de acrescentar dois questionamentos.

    1. A cultura não me parece tão estática quanto se supôs ao longo do debate com o Lucas, o Paulo Toledo e a Ana. Enquanto estrutura de significados compartilhada, a cultura está sempre mudando em função das críticas de grupos e indivíduos que a ele aderem. Estas críticas podem ser relacionados ao uso da "razão/modernidade" ou de uma razão mais instrumental subordinada a outros fatores (políticos, demandas subjetivas, etc.). Algumas sociedades como a nossa são mais tolerantes do que outras em relação a tais críticas, desvios, separações. Outras são menos, como é o caso dos regimes fundamentalistas islâmicos.

    2. Presumo que o termo modernidade (em "razão/modernidade") não tenha sido usado como sinônimo de "sociedade ocidental moderna", cuja cultura abrange também um outro tipo de racionalidade, a racionalidade instrumental (ou utilitária), que, a meu ver, não pode ser considerada exterior, anterior e superior a qualquer cultura particular.

    Um abraço.

    Héber Sales

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  5. Caro Héber,
    Quanto ao seu primeiro ponto, é verdade que o grau de estaticidade ou elasticidade das sociedades varia, mas, na presente discussão, o importante é a oposição entre a razão universal e a cultura particular, seja qual for o grau de elasticidade desta.
    Quanto ao segundo ponto, a sua presunção está certa. Creio ter deixado bem claro em vários textos que o que chamo de razão/modernidade não se confunde com o Ocidente.
    Quanto à racionalidade instrumental, a verdade é que ela pode, deve, e tem sido considerada como exterior, anterior e superior a qualquer cultura particular. É que ela não passa do resultado da abstração de determinados procedimentos – justamente os mais universais – da razão, de modo a torná-los instrumentalizáveis para qualquer fim imaginável. Assim, a lógica formal de Aristóteles era chamada de “órganon” – que quer dizer exatamente “instrumento”. O que Horkheimer e Adorno criticam na modernidade é o predomínio dessa razão formal e universal que, abstraída de qualquer fim determinado, pode ser – e tem sido – instrumentalizada para a consecução não somente de fins racionais, mas – sobretudo – de fins irracionais.
    Abraço,
    Antonio Cicero

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  6. Caro Cícero,

    Faz sentido. Culturalmente específico não é a razão instrumental em si, mas justamente esse aspecto citado por você ao invocar Horkheimer e Adorno, ou seja, o status dela na moderna sociedade ocidental, onde ela goza de uma rara independência em relação a outras esferas da cultura, sendo usada sistematicamente no mero cálculo do interesse individual, sem maiores considerações ao interesse coletivo e às restrições de ordem ética ou moral.

    Um abraço,

    Héber Sales

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