CHÁVEZ É UM RETRATO DAS DIFICULDADES DAS ESQUERDAS
* Hudson Carvalho
A queda do Muro de Berlim, em 1989, cristalizou-se como marco do ocaso do comunismo, embora algumas poucas experiências anacrônicas, como Cuba, ainda sobrevivam. Com o desmoronamento do comunismo, Francis Fukuyama decretou açodada e equivocadamente o fim da história, e, de lá para cá, ex-comunistas e esquerdistas tatuados de outras linhagens buscam reconstruir os seus espaços e as suas utopias.
Paralelamente, os postulados da economia de mercado instalaram-se avassaladoramente, alojando a primazia do capitalismo como verdade absoluta e quase universal. Com isso, esquerdistas de todo o mundo passaram a vagar catatônicos em um limbo existencial.
Os ensaios intermediários, moderados, gerenciados por esquerdistas envernizados na social-democracia, tiveram, parcial e temporariamente, algum êxito em países europeus de economia pujante. Depois, mesmo nesses ambientes, o tamanho do estado começou a transbordar e a fissurar mais ainda os experimentos esquerdistas, inclusive os reciclados e democráticos.
Ao mesmo tempo, com o término da polarização capitalismo versus comunismo, apresentaram-se os novos conflitos universais, que se acentuaram com a ascensão de George Bush nos Estados Unidos. No lugar do clássico confronto direita contra esquerda, estabeleceram-se outros tipos de colisões, alguns animados por estandartes religiosos.
Apesar de tudo isso, nada indica, porém, que se possa realmente abonar a morte das ideologias. Pelo contrário. O planeta continua a se mover sobre eixos ideológicos; agora, mais fracionados, sem a nitidez e a bipolaridade exclusiva das referências anteriores.
Na América Latina, por exemplo, é quase unânime o questionamento governamental ao liberalismo rubricado pelo Consenso de Washington. Tornamo-nos, com maior ou menor ênfase, dependendo do país, bastiões retóricos de resistência à lógica capitalista, a despeito de, na prática, continuarmos vivendo sob o seu predomínio. Pelo menos, rugimos e bravateamos. Nesse contexto, destaca-se o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, com suas gabolices.
Que Chávez encarne o que é melhor para a Venezuela no momento, diante de uma avara e corrupta oligarquia que mandou e desmandou inconseqüentemente naquele país por muitos anos, vá lá. Mas, entre isso e transformá-lo em líder regional e símbolo da regeneração esquerdista, cabe uma distância abissal. Caricato e antidemocrático, Chávez pode atender, no máximo, a aspirações emergentes na Venezuela e cercanias. Levá-lo, entretanto, a sério como guia deprecia a própria esquerda.
Idolatrá-lo pelo seu barroco antiamericanismo destaca ainda mais os descaminhos em que as esquerdas se encontram. Não é por considerarmos George Bush altamente pernicioso, que devemos, automaticamente, ter apreço pelo seu vaniloqüente crítico. Chávez não é alternativa a Bush. Guardando-se as proporções pela relevância suprema dos Estados Unidos, eles são da mesma cepa, sendo que o ruinoso governo Bush tem prazo de validade ajuizado pelo rito democrático americano.
Na verdade, sob o garrote do pensamento único que disciplinou as esquerdas durante quase todo o século passado, é difícil para essa gente raciocinar além de vertentes binárias e excludentes. Para as esquerdas, é tudo branco ou preto. Não há matizes nem relativismos; só o limitado império do absoluto.
Espelhar-se em uma figura como Chávez é sublinhar as deficiências e as estreitas divisas da própria esquerda. É verdade que, em um tempo de tantas inovações, por paradoxo, não está fácil, para as esquerdas, desbravarem veredas singulares. Elas, no entanto, é que devem ser buscadas, ambicionadas. Este é o desafio da esquerda: renovar-se na procura de rumos originais indubitavelmente democráticos, pois o socialismo do século XXI, apregoado por Hugo Chávez, não é historicamente futuro, é passado. E, como tal, repete-se como farsa, como, aliás, já alertara Marx.
* Jornalista.
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