Oficina irritada
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.
Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de vênus sob o pedicuro.
Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.
ANDRADE, Carlos Drummond de. "Oficina irritada". In:_____. "Claro enigma". In:_____. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.
4 comentários:
Caro poeta, tem algo a dizer sobre arcturo? Creio que o enigma não é assim tão claro... Ou é a intenção do Drummond de fazer um soneto "difícil de ler" ? Grande abraço
Caro Ricardo,
foi bom você fazer esse comentário porque somente ao lê-lo percebi que, na pressa, eu havia escrito "arcturo" com letra minúscula. Ora, "Arcturo" é um nome próprio. Trata-se de uma estrela (a mais brilhante da constelação de Boieiro), de uma figura mitológica ou de alguma pessoa desconhecida.
Para mim, o verdadeiro enigma é que, embora "difícil de ler" e enigmático, esse poema é belíssimo.
Caro Antonio Cícero, realmente o poema é magnífico e sua fruição dispensa a resolução dos enigmas. Mas acho que Arcturo é referência a Mário de Andrade. Drummond dedica a ele um outro poema no mesmo livro, dizendo que Mário "gira na Ursa Maior", que por sua vez, como se sabe, é constelação relacionada à de Boieiro. Um grande abraço, e obrigado pela conversa instigante.
Caro Cícero, me permita postar aqui uns versos que fiz pensando nesse poema:
Quero criar um livro antipático,
Barato, que se esqueça,
E permaneça
Perdido na estante, na memória,
Sem nenhuma glória.
Quero escrever um livro chinfrim,
Espelho do autor ruim,
Sujo, áspero, feio,
Que as pessoas leiam
No banheiro.
Quero produzir um livro esquisito,
Aflito, de que se goste
e se desgoste,
Que seja estranho ao tato, ao olfato,
Que amargue um caminho opaco.
Mas que, num futuro incerto,
Eu recolha do pó e, num afago,
salve ambos do ocaso,
Num recíproco abrigo e alento,
Como o pai e o filho ingratos.
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