28.10.18

José Eduardo Agualusa: "O novo rosto do Brasil no mundo"


Ontem, sábado, saiu em O Globo o seguinte, belo artigo de Agualusa:


O novo rosto do Brasil no mundo

O mundo ama o Brasil. Isto parece-me algo extraordinário, pois o mundo não ama o mundo. As nações odeiam-se uma as outras, desde o início dos tempos, vizinhos contra vizinhos, pobres contra poderosos, pobres contra pobres e poderosos contra poderosos. O Brasil, contudo, sempre foi a alegre exceção.

Países muito diversos, que se guerreiam uns aos outros, com bruto vigor e perseverança, convergem na simpatia pelo Brasil: israelitas e palestinos amam o Brasil; sauditas e iranianos amam o Brasil; angolanos e congoleses amam o Brasil; sérvios e croatas amam o Brasil. O Brasil, enfim, é o Nelson Mandela dos países.

Ou tem sido assim até agora. Infelizmente, o Brasil está em vias de se tornar um país normal — ou seja, odiável, como todos os outros.

Bem sei que, como qualquer paixão, também esta assenta (ou assentava) num logro ingênuo: amamos o Brasil porque queremos acreditar, ou porque precisamos acreditar, que em algum lado deste planeta devastado por furacões de ódio e de rancor, existe uma praia tropical, estendida ao sol de um verão perpétuo, na qual um povo moreno canta o amor e festeja a vida, harmonizando com talento acordes dissonantes. Sim, sabemos da violência, da insegurança, da pobreza, das desigualdades sociais. Afinal de contas, todos nós vimos “Cidade de Deus”. Acontece que mesmo na violência explícita havia uma possibilidade de redenção. Pelo menos era nisso que acreditávamos.

Ao longo das últimas semanas o Brasil vem mostrando ao mundo um outro rosto, nada simpático. Lendo a imprensa internacional somos confrontados com o horror que este novo rosto do Brasil vem provocando: Bernard-Henri Lévy, filósofo e escritor neoliberal francês, protestou na edição em português do “El País” contra “as declarações desse sujeito (Jair Bolsonaro), assim como o programa que as acompanha, que vão contra tudo aquilo de que o Brasil pode se orgulhar: sua multietnicidade, sua tradição e suas práticas de acolhida, seu liberalismo verdadeiro e a coabitação, em suas cidades imensas e belas, de múltiplas crenças”. Disse ainda: “Custa a crer que a pátria de Chico Buarque e Chico Mendes se deixe assim tentar por um retorno a um passado atroz, que deixou tantas cicatrizes ainda abertas”.

Marine Le Pen, líder da extrema direita francesa, acusou Bolsonaro de dizer “coisas extremamente desagradáveis, que não poderiam ser ditas em França”. Depois acrescentou: “São culturas diferentes”. Parece que para Marine Le Pen será normal os brasileiros dizerem “coisas extremamente desagradáveis”.

É este o perigo: o de avaliar um país através dos dirigentes que o seu povo escolhe. Claro que isso não faz sentido. O mesmo país que elegeu Obama, elegeu Trump, e isso não significa que os americanos degeneraram, passando de um povo elegante, culto e sofisticado, a brutos cor de laranja semi-letrados. Contudo, de uma forma consciente ou não, todos nós tendemos a tomar a parte pelo todo.

Falo por mim. Apaixonei-me pelo Brasil porque aos 12 anos ouvi Chico Buarque cantando os versos de João Cabral de Melo Neto. Se tivesse conhecido o Brasil unicamente através da obra (vamos chamar-lhe assim) de Alexandre Frota, ou da filosofia política (vamos chamar-lhe assim) de Jair Bolsonaro, teria hoje uma opinião muito diferente sobre os brasileiros.

Amanhã, com o resultado das eleições, ficaremos sabendo se a imagem do Brasil no mundo irá sofrer ou não danos irreparáveis.





AGUALUSA, José Eduardo. "O novo rosto do Brasi no mundo". In: O Globo. Rio de Janeiro, 27/10/2018.

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