2.10.18

José Eduardo Agualusa: "O Brasil enfrenta o anti-Brasil


Gostei muito do artigo que, sábado passado, em O Globo, o escritor angolano e cidadão do mundo José Eduardo Agualusa escreveu, tendo tomado como ponto de partida o vídeo em que Stephen Fry fala sobre o que pensa sobre o candidato a presidente Jair Bolsonaro. Abaixo do artigo, postei o vídeo de Stephen Fry.


O Brasil enfrenta o Brasil


Nas redes sociais vem circulando um vídeo do ator inglês Stephen Fry, alertando os brasileiros para o perigo que representa o crescimento da extrema direita. No essencial, Stephen Fry considera a multiplicação de declarações racistas, homofóbicas e machistas uma escolha equivocada para um país que tem na diversidade o seu principal traço de caráter. Seria, sugere o ator inglês, como se o Brasil estivesse escolhendo o anti-Brasil para o representar.

A diversidade do material humano com que se constituiu o ser brasileiro é, sem dúvida, extraordinária; basta percorrer as ruas de qualquer cidade do país para perceber isso. Contudo, passeando por Londres, Cape Town ou Nova York iremos deparar-nos com idêntica ou ainda maior diversidade. O que torna o Brasil original, o que explica a alegre vitalidade da sua cultura popular, não é tanto a diversidade: é a voracidade com que assimila o outro, isso a que chamamos mestiçagem.

Vivi dois anos entre Olinda e o Rio de Janeiro. Recordo desse meu breve exílio brasileiro a experiência do não exílio. Nunca me senti ostracizado. Nunca me senti estrangeiro. Nunca me senti colocado à margem. Pelo contrário, tinha de lutar todos os dias contra a tentação de me esquecer de mim, me refundando brasileiro.

Guardo desse tempo a ilusão de que é fácil virar brasileiro. Difícil é ser alemão, por exemplo, para citar um país onde até hoje a ascendência (o sangue) tem mais importância do que o lugar onde alguém nasce e cresce. Isto é, os filhos de imigrantes turcos nascidos na Alemanha não são automaticamente alemães (apenas se os pais estiverem legalmente no país há mais de oito anos), e continuam a ser tratados como turcos por uma boa parte dos seus concidadãos. Já os russos ou poloneses pertencentes a minorias de etnia alemã têm direito a passaporte germânico, ainda que nunca tenham visitado o país.

A propósito da Alemanha, onde também morei, lembro de uma ocasião em que vi, em Berlim, uma “japonesa” sambando. No momento em que a vi eu soube que ela não era japonesa. Era brasileira. Só podia ser brasileira. Esta capacidade de transformar um japonês, um alemão ou um angolano em brasileiro — num brasileiro inteiro, sem arestas —, é que me parece verdadeiramente singular.

E é este Brasil que está sob ameaça: o Brasil.

O anti-Brasil que vem crescendo e envenenando o Brasil me lembra certas doenças autoimunes. É como se o organismo — no caso, a sociedade brasileira — não fosse capaz de se reconhecer a si mesmo, os seus próprios órgãos e células, começando a se autodestruir.

O crescimento do anti-Brasil será apenas responsabilidade de políticos com um venenoso e persistente discurso de ódio? Creio que não. Provavelmente esses políticos apenas dão corpo a uma insanidade latente, que terminaria se manifestando, mais cedo ou mais tarde, com eles ou sem eles. Para a combater é preciso determinar primeiro de onde vem.

Sinto muito, não tenho respostas. Stephen Fry também não. Fry apenas está assustado, como eu, como milhões de outras pessoas no mundo inteiro, que amam o Brasil e a sua alegre e maravilhosa máquina de engolir e misturar culturas.

Infelizmente, no meio do ruído que se instalou no Brasil, fica difícil escutar as vozes lúcidas interessadas em discutir a questão e em encontrar respostas.



AGUALUSA, José Eduardo. "O Brasil enfrenta o Brasil". In: O Globo, Segundo Caderno, 29/09/2018.

2 comentários:

  1. É triste vermos pessoas que fazem parte de nosso grupo de amigos e familiares com ideias tão extremistas e cruéis. Parece ser como em "Ensaio sobre a Cegueira" de Saramago, altamente contagioso. Muito triste essa doença que assolou o Brasil.

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