23.7.18

Elias Canetti: trecho de "A consciência das palavras": trad. de Nelson Ascher



A morte é o primeiro e mais antigo, haveria quase a tentação de dizer: o único fato. Tem uma idade monstruosa e, ainda assim, é nova a cada hora. Seu grau de dureza é dez, e ela corta também como o diamante. Ela possui o frio absoluto do espaço exterior: 273 graus negativos. Ela tem a velocidade de um furacão, a maior. Ela é muito real e superlativa, mas não é infinita, porque pode ser alcançada por qualquer caminho. Enquanto a morte existir, qualquer declaração é uma declaração contra ela. Enquanto a morte existir, qualquer luz é um fogo-fátuo, pois conduz a ela. Enquanto a morte existir, nenhuma beleza é bela, nenhuma bondade é boa. [...] Todas as tentativas de chegar a um acordo com a morte (e que mais são as religiões?) falharam. A descoberta de que não há nada após a morte – uma apavorante e inexaurível descoberta – banhou a vida com uma nova e desesperada santidade. O escritor que, em virtude do que nós, algo sumariamente, chamamos de seu vício, é capaz de de participar de muitas vidas deve participar também de todas as mortes que ameaçam aquelas vidas. Seu próprio medo (e quem não teme a morte?) deve tornar-se o medo que todos têm da morte. Seu próprio ódio (e quem não odeia a morte?) deve transformar-se no ódio que todos têm da morte. Isso e nada mais é sua oposição ao tempo, repleta de uma miríade de mortes.”



CANETTI, Elias. Trecho de “A consciência das palavras”. In: ASCHER, Nelson. “Canetti e a consciência das palavras”. Trad. por Nelson Ascher. In: Folha de São Paulo: Ilustrada, 02/05/1987.

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