27.12.16

Claudia Roquette-Pinto: "a caminho"




a caminho

                     "Abriu-se majestosa e circunspecta
                      sem emitir um som que fosse impuro"
                                          Carlos Drummond de Andrade


estava a caminho: canoa
comprida-boa partindo
a sombra, a meio-e-meio, no rio
silêncio-cutelo e, certo,
o dia aberto         seu ventre
(azáfama de zangões urgentes)
cego

estava a caminho e era
tido por meu o rio
sem costas nem frente,
a brio
inteirado em silêncio

por dentro uma chusma de insetos
vazante, na beira, o estrépito
— meu enxame de equívocos

estava a caminho, e na curva
as águas fendidas      as duas
águas se apartam, súditas
do incêndio, das espadas,
do verde (sem acaso)
ruivo que picava
as folhas do gravatá

o gravatá — o suave
súbito roçar de
dedos (vermelho-
acicate) no umbigo
dos nimbos, acordar
a paisagem

o gravatá — seu recato:
ritmo intacto, enflorado,
servindo de pasto
para besouros, girinos
bebedor de símios

o gravatá — o severo
cerne,
o fero centro que ergue
verde-negro, estrela
de silêncio
e precisão

aqui a água turva,
de mistura com raízes
a curvatura da terra
empena,
oblitera a íris

aqui o rio dobra, a nau
soçobra, a cuia escura
do céu emborca
uma água dura,
às catadupas,
cai — fustiga como um pai

resta o caminho — o sombrio
seguir-do-rio (tateio
à guisa de aprendiz)
dedo cego, palavra‑
(sem rasgos na pele da água)
de-superfície

mudo, vazio,
cingido pela água difícil,
braçando no lodo, sigo,
às escuras,
a mão nua abrindo o fio
(começa comigo) a
costura invisível
do rio



ROQUETTE-PINTO, Claudia. "a caminho". In:_____. Zona de sombra. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.



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