8.3.14

Jean Wyllys: "Desonestidade intelectual"

No seguinte artigo, publicado ontem em O Globo, Jean Wyllys responde a um ataque de Rodrigo Constantino, um desses lamentáveis "novos" reacionários que (como, por exemplo, Luiz Felipe Pondé) não passam de caricaturas grotescas do já caricatural Olavo de Carvalho:


Desonestidade intelectual

Em espaço no GLOBO, um colunista que diz que o caviar é de esquerda afirmou que o movimento gay não fala da lei homofóbica de Uganda. Lembremos: ela impõe pena de prisão perpétua para quem “introduzir o pênis no ânus ou na boca de outra pessoa do mesmo sexo” e também condena os heterossexuais que tiverem um conhecido gay e não o denunciarem. Segundo ele, isso ocorre porque o movimento gay é de esquerda e a esquerda não critica os africanos (?!).
O bizarro raciocínio é que “condenar os africanos pela homofobia não ajuda na narrativa de minorias vítimas do ‘imperialista’ branco do Ocidente”, já que a homofobia seria um traço cultural desses povos (?!); e criticá-la iria contra o multiculturalismo, que ele associa à esquerda e opõe ao liberalismo e, portanto, aos gays.
O colunista diz ainda que não me pronunciei sobre a lei de Uganda e acrescenta que as feministas não denunciam a opressão contra as mulheres nos países islâmicos, já que os multiculturalistas “defendem atrocidades em culturas diferentes para negar a superioridade ocidental”, e que, para nós (gays, multiculturalistas, esquerdistas, tudo junto e misturado), toda narrativa deve servir para “pintar o homem branco judeu ou cristão como o maior vilão”.
São tantos equívocos juntos que dá preguiça responder, mas vamos lá:
1 - O movimento gay não é de esquerda nem de direita, nem os direitos humanos, nem os homossexuais. Há gays e lésbicas (e heterossexuais) de todas as ideologias, religiões, cores e preferências musicais; e existem, no mundo inteiro, movimentos LGBT com as mais diversas identidades políticas;
2 - Desde que o projeto de lei do deputado ugandense David Bahati começou a ser tramitado, em 2009, organizações LGBT do mundo inteiro vêm realizando uma campanha internacional para denunciá-lo, e, desde que a lei foi promulgada pelo presidente Museveni, essa campanha se intensificou. Por exemplo, a organização All Out já recolheu mais de 300 mil assinaturas contra a lei;
3 - Claro que já me pronunciei sobre o assunto! Como me pronunciei também no caso da lei homofóbica russa, aliás;
4 - A lei de Uganda, como outras dos 38 países da África que criminalizam a homossexualidade, não provém de nenhum traço cultural africano, mas da herança colonial (a primeira norma antigay de Uganda copiava o artigo 377 do Código Penal da Índia, introduzido pelo Império Britânico: foram os britânicos que levaram as leis “antissodomia” às colônias) e, mais recentemente, da ação das igrejas evangélicas fundamentalistas dos EUA, que investem milhões de dólares para espalhar a homofobia na África e financiar as campanhas dos políticos homofóbicos (assistam ao documentário “God loves Uganda!”). E até onde sabemos, o império britânico e as igrejas evangélicas americanas fazem parte do Ocidente.
5 - Claro que muitos ativistas gays e feministas, eu inclusive, denunciamos a opressão contra mulheres e homossexuais nos regimes islâmicos! Isso não tem nada a ver com esquerda e direita! Será que o colunista pensa que a ditadura iraniana é socialista?;
6 - Já que o colunista diz que nós (gays, multiculturalistas e esquerdistas) somos contra o “homem branco judeu” (?!), recomendo-lhe ler minha última coluna na revista “Carta Capital”, onde falo do antissemitismo e da homofobia do chavismo — porque o preconceito também não é de esquerda nem de direita.
Mas a desonestidade intelectual virou tática desse colunista.

Jean Wyllys

4 comentários:

  1. Cicero,

    concordo com o Jean, mas não podemos esquecer que ele, lamentavelmente, tende a ser, como acusa o Constantino, multiculturalista (ele mesmo admite isso).

    Além disso, na coluna a que ele se refere (sobre a Venezuela), Jean relativiza, ou como ele mesmo diz, tenta "sair da polarização improdutiva" a respeito da "revolução bolivariana". E, embora admita que há nela problemas graves, ele também afirma que é impossível "negar os avanços sociais conquistados pelo povo mais pobre da Venezuela durante os governos de Hugo Chávez".

    Seguindo este raciocínio, eu poderia dizer que é impossível negar os avanços sociais conquistados pelo povo mais pobre da Alemanha durante o governo (democraticamente eleito!!!) de Adolf Hitler. Mas acontece que eu não posso dizer isso, afinal qualquer avanço social e/ou econômico é simplesmente nulo se implica na perda ou redução do Estado democrático de direito.

    Jean parece levar isso menos em conta do que deveria, pois tenta relativizar o "irrelativizável", acaba ficando em cima do muro, não acha?

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  2. Erick,

    independentemente de tudo, o fato é que, em relação às acusações de Rodrigo Constantino, Jean tem toda a razão.

    Abraço

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  3. Prezados,

    1. O erro de Pondé, a meu ver, é acreditar que a razão é necessariamente relativizada pelos sentimentos. Talvez seja esse o 'resgate' que ele propõe, sendo certo, de qualquer forma, que o que ele chama de 'modernidade' não é a mesma coisa que Cicero conceitua em sua obra filosófica. Politicamente, Pondé se filia ao movimento 'liberal conservative' (liberal nos costumes e conservador em política). No Brasil, é um dos poucos que aponta diversos deslizes da esquerda. Ainda que contraditório – e ainda que ao fim, acabe ele por relativizar (seria melhor dizer, debochar?) dos direitos humanos, o que É ERRADO! –, a crítica que ele faz da utopia do pensamento de esquerda, como verdadeiro pensamento religioso (crítica essa que aparece no livro do Cicero, O Mundo desde o fim, em que o pensamento de Marx é considerado uma catácrase anabásica), é importante no cenário atual, em que o Papa virou Lula, e em que ser de esquerda se transformou em uma graça divina. Por fim, pelo fato de o ser humano – ainda que consideremos os avanços – ser, de fato, precário e ambivalente, deixando facilmente se guiar pelos sentimentos em detrimento da razão (é o que podemos perceber em nosso cotidiano), é que se faz imperioso lutar pelos direitos humanos. Então, ainda que Pondé tenha vários equívocos em suas conclusões, acho que parte de seu pensamento vem servindo como um contrapeso às utopias totalitárias que acreditam na construção de um 'outro' ser humano. O ser humano é esse 'mesmo', seu problema moral é interno; e daí a autonomia da moral, os erros, os desencontros, os desentendimentos, etc etc. Apenas a razão é que nos pode nortear na construção de um mundo (note que digo 'mundo' e não 'ser humano') que garanta, como já apontou Cicero em entrevista a Folha em 2007, “a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a abertura do mundo a novas possibilidades, a diversidade de culturas e formas de vida, a pluralidade de expressões eróticas, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.”. Claro que, a meu ver, se trata de uma aposta. E a palavra LUTA, diretamente ligada aos DIREITOS HUMANOS, é o que me faz insistir na esquerda. Mas não acho Pondé uma caricatura do Olavo de Carvalho, ainda que hajam algumas afinidades de pensamento entre eles. Pondé é a favor da união homoafetiva, além de ser niilista – ou seja, tudo o que Olavo repudia. Alias (num breve parênteses), que as paranoias de Olavo sobre o mainstream americano e sua atuação no mundo, divertem, divertem (risos).

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  4. 2. Sobre o texto de Jean Willis, que consiste em uma resposta ao Rodrigo Constantino (esse sim, caricatura rasa do Olavo de Carvalho), de fato pode ele estar 'radicalizando' quando vitimiza o povo africano e incrimina o 'malvado colonizador'. Em artigo recente de Demétrio Magnoli, intitulado Morte aos Gays! (Folha de São Paulo, 01.03.2014), o colunista afirma que “A postulação de uma "cultura africana" nasceu fora da África, no ventre do pan-africanismo, uma doutrina elaborada por intelectuais americanos e caribenhos no anoitecer do século 19. O pan-africanismo "africanizou-se" no pós-guerra, quando foi adotado por jovens intelectuais africanos que estudavam na Europa e nos EUA. Aqueles intelectuais viriam a liderar os movimentos de independência, convertendo-se em "pais fundadores" das atuais nações africanas. O sonho da unidade política da África esvaiu-se, mas a doutrina pan-africana sobreviveu como discurso legitimador dos novos regimes africanos. Sua pedra-de-toque é a noção de "cultura africana". Ela proporciona às elites dirigentes o álibi de culpar o "estrangeiro" (o colonizador, no passado; os EUA ou a Europa, no presente) pelos males que afligem seus países. (...)"Cultura africana", assim no singular, é uma noção enraizada no pensamento racial. Os intelectuais "anti-imperialistas" também a adotam, eximindo os dirigentes africanos da responsabilidade pelas leis homofóbicas. Eles argumentam que o homossexualismo era tolerado em certos povos africanos antes da colonização. É uma verdade de escasso significado: os gays não sofreram discriminação em diversas sociedades tradicionais, nos mais diferentes lugares do mundo, ao longo da história. Eles registram, ainda, que as primeiras "leis anti-sodomia" foram introduzidas na África pelos impérios europeus. Contudo, não se atrevem a explicar por que tais leis são restauradas na África muito depois de sua anulação nas antigas metrópoles europeias.”

    Abraços!

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