18.12.11

Sobre um texto apócrifo




Um amigo me enviou por e-mail um poema atribuído a Shakespeare. Ele começa assim:

“Depois de algum tempo você aprende a diferença,
a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se.
E que companhia nem sempre significa segurança.
[...]”

Como sou um aficionado de Shakespeare, vi logo que essas palavras não foram escritas pelo bardo. Ao perceber esse fato, resolvi fazer uma pesquisa sobre sua autoria. Nos sites brasileiros da Internet, ela é quase sempre atribuída a Shakespeare. Nos americanos, o texto, cujo começo, em ingles, diz

“After a while you learn
The subtle difference between
Holding a hand and chaining a soul
And you learn that love doesn't mean leaning
And company doesn't always mean security.
[…]”

é ora atribuído a Shakespeare, ora a uma certa Veronica A. Shoffstall. Ocorre que não se encontra, no catálogo da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, absolutamente nenhuma obra de tal escritora. Isso indica que ela simplesmente não existe.

Há sites, porém, em que o texto em questão é atribuído a Jorge Luis Borges. Isso ocorre principalmente nos sites hispânicos, onde ele se dá como

“Después de algún tiempo aprenderás la sutil diferencia entre
sostener una mano y encadenar un alma,
y aprenderás que amar no significa apoyarse,
y que compañía no siempre significa seguridad.
[…]”

Ora, ocorre que tal poema não se encontra nas Obras completas de Borges editadas pela Emecé, nem me parece ter nada a ver com Borges, do ponto de vista estilístico. Trata-se, na verdade, de um texto apócrifo. De todo modo, segue-se que, embora não tenha sido escrito por Borges, o mistério de sua autoria é, certamente, borgeano...

10 comentários:

  1. Cicero,

    Eu também sou um amante das obras de Shakespeare e não creio que esse texto seja do bardo inglês.

    Abraço forte,
    Adriano Nunes

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  2. Cicero,


    para divulgar: Patrícia Palumbo/Estadão divulgou uma lista das melhores canções de 2011. Duas têm a assinatura da Marina Lima. Viva!!!!! Olhe o link aqui: http://blogs.estadao.com.br/patricia-palumbo/tag/melhores-de-2011/


    Abraço forte,
    Adriano Nunes

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  3. Alguns informações do texto eu já sabia; outras, desconhecia. De todo modo, gostei muito disso:

    "[...] segue-se que, embora não tenha sido escrito por Borges, o mistério de sua autoria é, certamente, borgeano..."

    Feliz Ano Novo pra todos por aqui e para Cicero em especial. Que 2012 seja repleto de (bons) ACONTECIMENTOS!

    Aetano

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  4. Obrigado, Aetano! Saudades!

    Um maravilhoso ano novo para você também!

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  5. Sensível e cheio de mistério. Efetivamente uma investida do tempo que bifurca

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  6. Cicero, meu caro,

    saudades de vc tb! A ausência é pq "para todos os porquinhos a vida está cada vez mais difícil" rs...

    Bom, como fiz no final do ano passado, vou deixar pra vc e para tds do convívio um bem-humorado poema de Drummond. Segue:

    O novo homem

    O homem será feito
    em laboratório.
    Será tão perfeito
    como no antigório.
    Rirá como gente,
    beberá cerveja
    deliciadamente.
    Caçará narceja
    e bicho do mato.
    Jogará no bicho,
    tirará retrato
    com o maior capricho.
    Usará bermuda
    e gola roulée.
    Queimará arruda
    indo ao canjerê,
    e do não-objeto
    fará escultura.
    Será neoconcreto
    se houver censura.
    Ganhará dinheiro
    e muitos diplomas,
    fino cavalheiro
    em noventa idiomas.
    Chegará a Marte
    em seu cavalinho
    de ir a toda parte
    mesmo sem caminho.
    O homem será feito
    em laboratório,
    muito mais perfeito
    do que no antigório.
    Dispensa-se amor,
    ternura ou desejo.
    Seja como flor
    (até num bocejo)
    salta da retorta
    um senhor garoto.
    Vai abrindo a porta
    com riso maroto:
    "Nove meses, eu?
    Nem nove minutos."
    Quem já conheceu
    melhores produtos?
    A dor não preside
    sua gestação.
    Seu nascer elide
    o sonho e a aflição.
    Nascerá bonito?
    Corpo bem talhado?
    Claro: não é mito,
    é planificado.
    Nele, tudo exato,
    medido, bem-posto:
    o justo formato,
    o standard do rosto.
    Duzentos modelos,
    todos atraentes.
    (Escolher, ao vê-los,
    nossos descendentes.)
    Quer um sábio? Peça.
    Ministro? Encomende.
    Uma ficha impressa
    a todos atende.
    Perdão: acabou-se
    a época dos pais.
    Quem comia doce
    já não come mais.
    Não chame de filho
    este ser diverso
    que pisa o ladrilho
    de outro universo.
    Sua independência
    é total: sem marca
    de família, vence
    a lei do patriarca.
    Liberto da herança
    de sangue ou de afeto,
    desconhece a aliança
    de avô com seu neto.
    Pai: macromolécula;
    mãe: tubo de ensaio
    e, per omnia secula,
    livre, papagaio,
    sem memória e sexo,
    feliz, por que não?
    pois rompeu o nexo
    da velha Criação,
    eis que o homem feito
    em laboratório
    sem qualquer defeito
    como no antigório,
    acabou com o Homem.
    Bem feito.

    Carlos Drummond de Andrade
    In "Caminhos de João Brandão"
    (publicado originalmente no JB, 17/12/1967)
    José Olympio, 1970.

    Abcs!

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  7. Se o texto, além de bom, também fosse no estilo de Shakespeare, com certeza seria um mistério borgeano (podendo ser o próprio Borges o autor do poema).
    JR.

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  8. Cícero,

    Dê uma olhada em http://www.emule.com/2poetry/phorum/read.php?4,27156,40760. A história parece ser menos borgeana do que se supõe...

    Abraço,

    Ronaldo

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  9. Ronaldo,

    os textos do e-mule não chegam a conclusão nenhuma. Ninguém lá se entende. Duas mulheres desconhecidas (não se encontram nem na Biblioteca do Congresso nem na Wikipedia) disputam a autoria do poema. E as duas parecem fake. A coisa continua sendo borgeana sim.

    Abraço

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