27.7.10

Francis Ponge: "De l'eau" / "Água": trad. de Fred Girauta




Água


Abaixo de mim, sempre abaixo de mim se encontra a água. É com os olhos baixos que sempre a vejo. Como o solo, como uma parte do solo, como uma modificação do solo.

Ela é branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: o peso; dispondo de meios excepcionais para satisfazer esse vício: contornando, traspassando, erodindo, filtrando.

Dentro dela esse vício também brinca: ela desaba sem cessar, renuncia a toda forma a cada instante, tende somente a se humilhar, deita-se de bruços no chão, quase cadáver, como os monges de certas ordens. Sempre abaixo: tal parece ser seu lema: o contrário de excelsior.

*

Poderíamos quase dizer que é louca a água, por esta histérica necessidade, que a possui como ideia fixa, de obedecer somente ao seu próprio peso.

Certamente tudo no mundo conhece essa necessidade, que sempre e em todos os lugares deve ser satisfeita. Esse armário, por exemplo, mostra-se bastante teimoso em seu desejo de aderir ao solo, e se um dia encontrar-se em equilíbrio instável, preferirá atirar-se a resistir. Mas enfim, em certa medida, ele brinca com o peso, desafia-o: não desaba com todas as suas partes, seus moldes e molduras não se conformam. Há nele uma resistência em prol de sua personalidade e de sua forma.

Líquido é por definição o que prefere obedecer ao peso a manter a forma, o que rechaça toda postura para obedecer ao seu peso. E, por causa dessa ideia fixa, de seu mórbido escrúpulo, perde toda compostura. Desse vício, que o torna rápido, precipitado ou estagnado; amorfo ou feroz, amorfo e feroz, feroz perfurante, por exemplo; astuto, filtrante, circundante; tanto que podemos fazer dele o que quisermos, e conduzir a água por tubos para fazê-la depois jorrar verticalmente, a fim de fruir enfim seu modo de se precipitar como chuva: uma verdadeira escrava.

... Entretanto, o sol e a lua têm ciúme dessa influência exclusiva, e tentam exercer seu poder sobre ela quando se oferece em grandes extensões, sobretudo se ela estiver em estado de mínima resistência, dispersa em finas poças. O sol, então, lhe cobra alto tributo. Ele a força a um ciclismo perpétuo, e a trata como um esquilo em sua roda.

*

A água me escapa... me escorre entre os dedos. E, ainda mais! Não é sequer tão definida (como um lagarto ou um sapo): ainda me restam traços dela nas mãos, manchas relativamente lentas para secar ou que é preciso enxugar. Ela me escapa e, contudo, me marca, independentemente de minha vontade.

Ideologicamente dá no mesmo: ela me escapa, escapa a toda definição, mas deixa rastros, manchas informes em meu espírito e sobre o papel.

*

Inquietude da água: sensível à mínima alteração da declividade. Pulando as escadas com dois pés ao mesmo tempo. Brincalhona, de obediência pueril, voltando imediatamente quando, através da mudança da inclinação para este lado, ela é chamada.




De l'eau


Plus bas que moi, toujours plus bas que moi se trouve l’eau. C’est toujours les yeux baissés que je la regarde. Comme le sol, comme une partie du sol, comme une modification du sol.

Elle est blanche et brillante, informe et fraîche, passive et obstinée dans son seul vice : la pesanteur; disposant de moyens exceptionnels pour satisfaire ce vice : contournant, transperçant, érodant, filtrant.

À l’intérieur d’elle-même ce vice aussi joue : elle s’effondre sans cesse, renonce à chaque instant à toute forme, ne tend qu’à s'humilier, se couche à plat ventre sur le sol, quasi cadavre, comme les moines de certains ordres. Toujours plus bas : telle semble être sa devise : le contraire d’excelsior.

*

On pourrait presque dire que l'eau est folle, à cause de cet hystérique besoin de n'obéir qu'à sa pesanteur, qui la possède comme une idée fixe.

Certes, tout au monde connaît ce besoin, qui toujours et en tous lieux doit être satisfait. Cette armoire, par exemple, se montre fort têtue dans son désir d’adhérer au sol, et si elle se trouve un jour en équilibre instable, elle préférera s’abîmer plutôt que d’y contrevenir. Mais enfin, dans une certaine mesure, elle joue avec la pesanteur, elle la défie : elle ne s’effondre pas dans toutes ses parties, sa corniche, ses moulures ne s’y conforment pas. Il existe en elle une résistance au profit de sa personnalité et de sa forme.

Liquide est par définition ce qui préfère obéir à la pesanteur, plutôt que maintenir sa forme, ce qui refuse toute forme pour obéir à sa pesanteur. Et qui perd toute tenue à cause de cette idée fixe, de ce scrupule maladif. De ce vice, qui le rend rapide, précipité ou stagnant; amorphe ou féroce, amorphe et féroce, féroce térébrant, par exemple; rusé, filtrant, contournant; si bien que l’on peut faire de lui ce que l’on veut, et conduire l’eau dans des tuyaux pour la faire ensuite jaillir verticalement afin de jouir enfin de sa façon de s’abîmer en pluie : une véritable esclave.

... Cependant le soleil et la lune sont jaloux de cette influence exclusive, et ils essayent de s’exercer sur elle lorsqu’elle se trouve offrir la prise de grandes étendues, surtout si elle y est en état de moindre résistance, dispersée en flaques minces. Le soleil alors prélève un plus grand tribut. Il la force à un cyclisme perpétuel, il la traite comme un écureuil dans sa roue.

*

L’eau m’échappe... me file entre les doigts. Et encore ! Ce n’est même pas si net (qu’un lézard ou une grenouille) : il m’en reste aux mains des traces, des taches, relativement longues à sécher ou qu’il faut essuyer. Elle m’échappe et cependant me manque, sans que j’y puisse grand chose.

Idéologiquement c’est la même chose : elle m’échappe, échappe à toute définition, mais laisse dans mon esprit et sur ce papier des traces, des taches informes.

*

Inquiétude de l’eau : sensible au moindre changement de la déclivité. Sautant les escaliers les deux pieds à la fois. Joueuse, puérile d’obéissance, revenant tout de suite lorsqu’on la rappelle en changeant la pente de ce côté-ci.



PONGE, François. Le parti pris des choses. Paris: Gallimard, 1942.

15 comentários:

  1. Pinicante e seco.
    Molhado de virtude.
    Muito lindo e derradeiro.

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  2. Francis Ponge entra na matéria, experimenta todas as possibilidades!Impressionante!

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  3. é preciso dizer que a tradução teve a generosa colaboração do Cícero, que me deu um belo presente de aniversário postando-a aqui.

    grande abraço, poeta!

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  4. ah é bonito sim...

    mais c'est aussi tellement glacial que je reste de marbre !

    dificil de ler, dificil de imaginar, dificil de relaxar lendo...esse poema ( poema ? ) parece uma sessao carissima com algum escroc lacaniano...

    seu cicero, tenho andado com o livro na bolsa, ainda nao li...acho que vou tirar da bolsa, até o outono

    ( a traduçao ficou massa )

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  5. que maravilha!
    a mesma obediência da água ao peso, ponge tem ao peso da palavra.

    ***

    O mar ))))

    vertebrou-se. sucto

    (o mar
    solstituído no inverno)
    Ssucto
    rictus
    suspiro
    sangue
    susto
    rictus

    suspiro.

    deu com punhos em seco
    sentou-se no escolho.

    enfim chorou todos
    os naufrágios: aeroelástica

    espuma, flor ou libélula
    (florida por um segundo)
    de salsugem

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  6. Que beleza !!!
    O texto escorre lindo no seu curso !!!!
    FRANCIS PONGE na veia !!!!
    Sempre !!!!
    Viva a poesia !!!!


    JORGE SALOMÃO RIO 2010

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  7. engraçado que nesse blog os comentaristas nao conversam entre si...o dialogo é unicamente entre cada um e seu cicero ! estranho....

    web 2.0.....

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  8. bela tradução, saudoso girautex!!!

    Abraço a todos,
    Marcelo Diniz

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  9. gostei.
    aqui sempre tem um bom texto, não é mesmo...
    um abraço

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  10. Maravilha de texto.
    Avante, CÍCERO!!!

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  11. saudades também, Marcelo! bom "vê-lo" por aqui.
    E o elogio, vindo de um belíssimo tradutor do francês como vc, é uma alegria.

    abraços beijos!

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  12. Caros Rodrigo Madeira e Fred Girauta,

    Por alguma razão, não consegui postar os últimos comentários que vocês enviaram. Sugiro que os reenviem.

    Abraços

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  13. Esse é lindíssimo. A sonoridade é líquida...Maravilhoso.

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