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As raças no caldeirão
SOU CONTRA a oficialização de raças no Brasil. Não digo que não haja aqui idiotas que, querendo acreditar na existência de raças humanas, sejam racistas. Mas parece-me inteiramente contraditória a ideia de combater o racismo através justamente do reconhecimento oficial da existência de raças. A República não tem o direito de endossar uma ficção tão retrógrada.
Na maior parte do Brasil, a fusão de diversas "raças" e culturas já há muito progrediu a tal ponto que não é mais sequer concebível -exceto para grupos insignificantes, ou com uma dose ridícula de artificialidade- pretender restaurar efetivamente a putativa pureza racial ou cultural de qualquer um dos seus componentes.
A verdade é que são estonteantes as formas da nossa natureza humana (formas ou cores de corpos, peles, cabelos, olhos etc.), resultantes dos cruzamentos mais improváveis. Pode-se dizer que, aqui, cada ser humano parece resultar de uma combinação singular de características das mais diversas etnias. Longe de significar homogeneização racial, isso sugere que, no limite, cada brasileiro tende a ser a expressão de uma "raça" individual. Esse oxímoro exprime o fato de que, através não da redução, mas da multiplicação das diferenças, entrevê-se no Brasil, a longo prazo, a pulverização -ou melhor, a dissolução- das "raças".
Da mesma maneira, é impossível ignorar que nem as formas da cultura erudita nem as criações mais importantes da cultura popular brasileira se dão como arquétipos imemoriais ou heranças de um passado miticamente remoto. Elas constituem, ao contrário, resultados memoráveis da mediatização recíproca das mais diferentes culturas. Uma grande invenção feito o samba, por exemplo, pode entender-se como uma forma admirável de se conceber criativamente o concubinato de, por um lado, ritmos, ritos, danças, instrumentos, paradigmas musicais etc. de diferentes proveniências africanas com, por outro lado, melodias, harmonias, versos, danças, instrumentos, paradigmas musicais etc. de diferentes proveniências europeias. A realidade do samba aponta para a possibilidade de infinitas outras combinações de elementos de diversas origens.
A biodiversidade, se tomada também em sentido antropológico (e não apenas no que toca à antropologia física mas à cultural), é, de fato, uma das características mais marcantes do Brasil. Ora, como diz a letra de um rock brasileiro, "riquezas são diferenças". Que o converso disso também é verdadeiro, isto é, que diferenças são riquezas, já era considerado evidente por Aristóteles no princípio da "Metafísica", ao explicar que a razão pela qual preferimos a vista a todos os outros sentidos é que ela nos faz conhecer mais "e mostra muitas diferenças".
O mestiço não deve ter a ilusão de que sua cultura autêntica seja diferente daquela em que foi criado. O caráter acidental e contingente de sua configuração racial não pode deixar de lhe revelar o caráter igualmente acidental e contingente de toda relação entre "raça" e cultura.
Para ele, está na cara, de fato, algo que, de direito, ninguém atualmente pode deixar de saber: que os racismos, nacionalismos e fundamentalismos que hoje por todos os continentes tendem a se reafirmar com virulência não passam, em última análise, de tentativas cínicas ou desesperadas de renegar a consciência social -generalizada e aguçada em consequência das recentes revoluções na informática, nas comunicações e nos transportes- do caráter acidental, contingente e relativo de fronteiras, horizontes, crenças, religiões, totens, tabus, costumes, tradições, valores, culturas, etnias, nações, mundos etc.
Devemos nos orgulhar de afirmar o Brasil como o verdadeiro caldeirão, o verdadeiro "melting pot", que os Estados Unidos não chegaram inteiramente a ser, em que se dão tanto a promiscuidade quanto a miscigenação das mais diversas culturas e "raças" -que modificam, relativizam, instrumentalizam e fecundam umas às outras.
Para o brasileiro, a afirmação da acidentalidade, da contingência e da relatividade das identidades positivas e particulares que entram em sua composição se dá como fundamento essencial, necessário e absoluto de sua nacionalidade. Nesse sentido, a originalidade do Brasil -um pouco como a singularidade do Ocidente, para Max Weber- não deve ser buscada na particularidade deste país, mas no seu modo de ser universal.
Excelentes colocações. Pena que a realidade sócio-política-pré e pós-paga do nosso Brasil não permita que apenas nos consideremos no que haveria de melhor: humanos. Ou não?
ResponderExcluiré isso!
ResponderExcluire que essa palavra "raça" seja usada sempre entre aspas, até que caia em desuso.
E mesmo que algo ou alguém queira impedir que exerçamos a nossa HUMANIDADE acima de divisões racistas, ela deve se afirmar, como vem se afirmando, a cada momento.
abraço!
O tratamento de uma diferença meramente imaginária, a diferença de cor das pessoas, enquanto traço visível de uma diferença ainda mais profunda (de raça) constituiu o embrião dos fascismos do séc.XX. Usa-se toda sorte de argumentos para corroborar essa diferença. O perigo é quando se rouba das ciências seus conceitos, se aproveita de seu prestígio e credibilidade para com isso respaldar diferenças entre os homens. O que se pretende implantar no Brasil em relação a cotas para negros, por exemplo, parte destes pressupostos, de que tais diferenças possuem a mesma objetividade que a queda de um corpo estudado pela física. A diferença entre os homens baseada em raça e cor em hipótese alguma diz respeito à ciência. Provém, antes, da cultura, dos modos de olhar aqueles que julgamos não serem semelhantes a nós.
ResponderExcluirPerfeitas as colocações.Que o Brasil comece a mudar essa e outras realidades.
ResponderExcluirNum livro que vendeu pacas, um poeta usa palavra bonita, macrothymias, alma grande, esse é Antonio Cícero.
ResponderExcluirBravo!
ResponderExcluir"... ou então cada paisano ou cada capataz..."
ResponderExcluirSeu texto é pungente! Ótimo.
Cicero,
ResponderExcluirtalvez a República esteja a tentar criar mais emprego:
trezentos funcionários a fazer trabalho de campo, recolhendo dados;
outros tantos a compilar os dados obtidos tentanto definir, por algoritmos estatísticos ainda por inventar, as características e o número das "verdadeiras raças brasileiras";
mais uma batelada de funcionários ocupados tentando implementar as novas classificações - "mas se a sua mãe é guarani, você tem olhos verdes e samba porquê?? - e falhando sucessivamente...
e depois - muita burocracia depois - descobrem, como o personagem de Mia Couto, que "cada homem é uma raça" e desistem. e lá vão os funcionários para o desemprego outra vez... que chatice! (há melhores maneiras de criar emprego).
mas o artigo é excelente e aliás a questão de que o princípio da diversidade se aplica também à cultura, é essencial e geralmente ignorado.
obrigada pelo post & abraço,
F.
Antonio Cicero,
ResponderExcluirSó posso aplaudir esse seu texto tão lúcido sobre um assunto sobre o qual temos ouvido tanta besteira. Perfeito. Obrigado mais uma vez.
Grande Cicero,
ResponderExcluirExcelente texto! Brilhante! Fez-me lembrar da música/poema do Arnaldo Antunes "Inclassificáveis":
"Inclassificáveis"
Arnaldo Antunes
Composição: Arnaldo Antunes
que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?
que preto branco índio o quê?
branco índio preto o quê?
índio preto branco o quê?
aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos mamelucos sararás
crilouros guaranisseis e judárabes
orientupis orientupis
ameriquítalos luso nipo caboclos
orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs
somos o que somos
inclassificáveis
não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,
não há sol a sós
aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos tapuias tupinamboclos
americarataís yorubárbaros.
somos o que somos
inclassificáveis
que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?
não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,
não tem cor, tem cores,
não há sol a sós
egipciganos tupinamboclos
yorubárbaros carataís
caribocarijós orientapuias
mamemulatos tropicaburés
chibarrosados mesticigenados
oxigenados debaixo do sol
Abs
Adriano Nunes.
Excelente!
ResponderExcluirFico feliz de ler um texto tão lúcido sobre um assunto o qual ouvimos diariamente à repetição ad nauseam das mesmas velhas tolices.
Parabéns.
um abraço,
Lucas
Adriano,
ResponderExcluirobrigado pela lembrança. A canção do Arnaldo tem tudo a ver com minhas ideias. Vou postá-la.
Abraço grande
Excelentes considerações.
ResponderExcluirEstou terminando minha dissertação sobre a questão da hibridação na obra de Caetano - "muso híbrido". Ler seu texto alentou minha solidão acadêmica.
Abraços
Cícero, concordo em gênero, número e grau com os grandes argumentos e ambições do seu artigo, mas sempre acho (cá, tão longe, mas tão perto disso tudo) que se tivessem gasto contra o racismo no Brasil metade da tinta e da inteligência que gastam contra a racialização atual, o clima barra-pesada das ruas, das escolas, da música, da internet, da cultura em geral e da política não haveria chegado onde chegou. Não que seja tarde, mas não vejo passeatas nem manifestações vigorosas contra o racismo no Brasil. Abraços, Sandro Ornellas
ResponderExcluirE assitindo ontem o filme "O grupo Baader-Meinhof", me lembrei do seu artigo sobre Foucault e a revolução no Irã. O filme me pareceu uma pequena aula sobre o contexto de violência radical dos anos 70, que me lembrou, contextualizou e separou de Foucault, que parecia escrever sob aquele clima. Abraço, Sandro
ResponderExcluirSandro,
ResponderExcluirtambém acho que, além de cotas socio-econômicas, e não raciais, devia haver uma forte campanha permanente, tanto em escolas quanto em veículos de comunicação, que, divulgando o fato científico de que não existem raças, desmoralizassem e ridicularizassem o racista.