2.12.08

Comentários de Aetano sobre Jorges Luís Borges e Fernando Pessoa, e respostas minhas

Dois comentários de Aetano, um sobre o poema de Borges, e outro sobre o do Alberto Caeiro – em ambos ele se refere a Nietzsche –, provocaram-me a escrever respostas um pouco mais longas do que o normal. Achei que tanto os comentários como as respostas mereciam ser postadas aqui.

Começo com o segundo, sobre o poema do Borges:

Aetano disse:

"Não cometamos covardia em relação a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso."
Nietzsche. "Crepúsculo dos ídolos", p. 10.
Grato pelo poema, anyway.
@eta

Minha resposta:

Aetano,

Aparentemente, você pretende usar o aforismo de Nietzsche para criticar o poema do Borges. Para mim, isso é o exemplo de uma confusão que deve ser evitada. O aforismo consiste numa proposição que se quer verdadeira. Ela diz que o remorso é indecente, pois representa uma espécie de deserção do ato a que se refere, logo, uma covardia.

O poema não deve ser lido como uma proposição, pois ele consiste num objeto artístico, e um objeto artístico de verdade é muito mais complexo que qualquer proposição. Ele não está, de fato, afirmando coisa alguma. Quem é o sujeito do poema? O Borges? É provável que não. Trata-se de um personagem. Será que Borges concorda com ele? Certamente há ironia no poema. O “pecado” que o sujeito do poema cometeu é o oposto do “pecado” religioso, que desvaloriza esta vida em nome da “outra”. Ele diz não ter sido feliz aqui na terra. Por que? Porque a vida que seus pais – e que o senso comum considera uma vida feliz – não foi a vida que ele livremente escolheu, não foi a vida que o fascinou e fisgou, isto é a vida de artista. Normalmente, julgamos feliz aquele que faz o que quer. Aqui, porém, o artista se considera infeliz porque fez o que quis, e não o que, segundo os outros, traria a felicidade. É que o sujeito do poema é artista, e justamente o artista (embora não só ele) se fascina pelas vidas que não teve, que não escolheu, que poderia ter escolhido. Assim, muitas vezes ele é capaze de questionar as escolhas que fez, pois elas sempre representam um empobrecimento das infinitas possibilidades que a vida lhe abria antes que elas tivessem sido feitas. Essa é “sombra” que acompanha todos nós, quer a vejamos, quer não. O sujeito do poema, artista, vê a sombra, e reconsidera sua vida. Tal é o Leitmotif da vida de um poeta como Valéry, que observou uma vez: "Que me faz o que já fiz? Há algo mais burro que o remorso: é o contentamento".

“Remorso” é, etimologicamente, “morder de novo”, como o título original do poema: “Remordimiento”, remordimento. O “remorso” aqui é o ato pelo qual o artista incessantemente tenta morder e remorder, através da sua arte, aquilo que não mordeu na vida. Não se trata, ao contrário do remorso de que fala Nietzsche, de renegar o que fez da vida, mas de querer provar também até daquilo que ele não fez dela.

Um último detalhe: o poeta diz ter aplicado sua mente “às simétricas porfias / da arte, que entretece naderias”. Trata-se de ninharias, do ponto de vista dos que o queriam ver feliz. Essas ninharias se opõem, na cabeça deles, às coisas substanciais, às coisas que têm valor (e que são feitas pelos homens “valentes”, entre os quais o artista não se conta), às atividades práticas e positivas que eles julgam trazer a felicidade. Mas a palavra “naderia” vem de “nada”. O artista entretece naderias, coisas vindas do nada, à sua arte. Assim são as considerações do poeta sobre o que ele poderia ter sido mas não foi, sobre o que não mais será, sobre o não ser da felicidade que lhe propunham, sobre o não ser entrelaçado à sua própria vida. Mas só da vida dele? Não será a vida de todo homem, pela sua própria mortalidade, pela sua própria finitude, entrelaçada ao nada? Não faz parte de toda vida humana a sombra do que não foi, do que não fez, do que poderia ter sido ou feito, do que não pode mais ser ou fazer? Nenhuma vida humana é pura positividade, sem traço da negatividade, do nada: ao contrário, toda vida humana é inteiramente entrelaçada com o nada. É, portanto, uma espécie de mentira a tentativa de reduzir a “ninharias” as “naderias” do artista. Trata-se de uma espécie de tentativa de recalcar o nada, uma incapacidade de aceitar a sombra. Mas, nesse caso, é o artista, que enfrenta a sombra, que é verdadeiramente valente. Paradoxalmente, então, a afirmação da vida do homem "positivo" é superficial, pois, escamoteando a negatividade, não afirma toda a vida; e é o poema intitulado “Remorso”, que incorpora em sua própria tessitura também a sombra e o nada, e tanto o que é quanto o que poderia ter sido, que constitui uma afirmação trágica porém profunda da vida.

É claro que o que acabo de dizer é apenas uma das muitas leituras que esse poema oferece. Comparado com ele, infinitamente profundo e rico, o aforismo de Nietzsche é superficial e pobre. Ao dizer isso não pretendo, de modo nenhum, dizer que Nietzsche fosse superficial ou pobre. Ele era freqüentemente profundo e rico. É a poesia que é mais profunda e rica do que as proposições filosóficas.

Antonio Cicero


Outro comentário do Aetano, este sobre o poema do Alberto Caeiro:

Há pouco tempo procurei saber da influência de Nietzsche na poesia de Pessoa, mas não encontrei nada (nem continuei a busca). Mas há muito do "profeta sem morada" na poesia de Pessoa. Seria possível postar textos de Nietzsche que guardam grande semelhança com esse poema de Caeiro, por exemplo, e reconhecer em ambos (textos e poema) um ataque a Kant e à sua "coisa em si". Mais. Seria possível entender o presente poema como uma negação de todo o IDEAL, de toda METAFÍSICA, enfim, de toda idéia que divida o mundo em duas realidades distintas, quais sejam, essência e aparência.
Grato pelo espaço.
@eta.

Minha resposta:

Aetano,

Fernando Pessoa de fato leu Nietzsche, mas é muito crítico em relação a ele. Algumas críticas me parecem perfeitas, outras nem tanto. Ele afirma, por exemplo:

“‘A alegria’, diz Nietzsche, ‘quer eternidade, quer profunda eternidade’. Não é nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento”.

De: PESSOA, Fernando. “Antônio Botto e o ideal estético em Portugal” (1922). In: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980.


Outro trecho:

“O ódio de Nietzsche ao cristismo aguçou-lhe a intuição nestes pontos. Mas errou, porque não era em nome do paganismo greco-romano que ele erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. Nem aquelas teorias desumanas, excessivas tal qual como as cristãs, embora em outro sentido, nada devem ao paganismo claro e humano dos homens que criaram tudo o que verdadeiramente subsiste, resiste e ainda cria adentro do nosso sistema de civilização.”

De: PESSOA, Fernando. “Prefácio de Ricardo Reis”. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1996.

E um trecho um pouco mais forte:

“O próprio Nietzsche asseverou que uma filosofia não é senão a expressão de um temperamento.
Não é assim, suficientemente. As teorias de um filósofo são a resultante do seu temperamento e da sua época. São o efeito intelectual da sua época sobre o seu temperamento. Outra coisa não podia suceder (ser).
Assim, pois, a filosofia de Friedrich Nietzsche é a resultante do seu temperamento e da sua época. O seu temperamento era o de um asceta e de [um] louco. A sua época no seu país era de materialidade e de força. Resultou fatalmente uma teoria onde um ascetismo louco se casa com uma (involuntária que fosse) admiração pela força e pelo domínio. Resulta uma teoria onde se insiste na necessidade de um ascetismo e na definição desse ascetismo como um ascetismo de força e de domínio. Donde a assumpção da atitude cristã da necessidade de dominar os seus instintos, tornada aqui - mercê da contribuição fornecida pela loucura do autor - a necessidade de dominar toda a espécie de instintos, incluindo os bons, torturando a própria alma, o próprio temperamento (noção delirante).”

De: PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966.

Antonio Cicero

22 comentários:

  1. AMADO MESTRE,


    Sempre esclarecedor, claro! A Filosofia não pode tocar na poesia ainda que a poesia venha a sentir os seus lábios!
    Aetano, parabéns pelos comentários! Esses são os que nos levam a pensar, mesmo que não concordemos com eles.Instigam-nos!


    ABRAÇO FORTE!
    ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.

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  2. Prezado Antônio Cícero,


    É sempre muito bom quando você responde aos comentários interessantes.
    Escreví este poema abaixo sobre Nietzsche.

    CARTA AO JOVEM NIETZSCHE

    O fino trato
    que despendes com tua escrita
    não merece o desfastio
    dos ascetas.

    Poeta,
    mantenha léguas
    do itinerário dos justos.

    O verso
    que te arde as conjuntivas,
    que faz suar as mãos sobre a mesa,
    desgosta os santos.

    Lembre-se que
    gostariam de te estirpar
    os olhos mas
    te presenteiam com um sorriso.

    Sempre soubestes
    que poderias contar
    com teus inimigos
    (os bons e justos tudo temem)

    Poderá existir alguém
    mais fiel que um inimigo?


    Um abraço,

    Jorge Elias

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  3. Caro Cícero,

    foi com satisfação e surpresa que observei duas postagens minhas receberem comentários seus. Não contava com tanto. Admito q fiquei lisonjeado. Gostaria de tecer observações sobre os seus comentários, mas estou deveras ocupado. Por ora, envio um esquema das observações q pretendo fazer e a promessa de q voltarei em breve:

    - Da tolerância ativa;
    - O poeta-artista e o filósofo Nietzsche e em Nietzsche;
    - O problema da unidade da consciência;
    - O aforismo de Nietzsche e a sua (dele) concepção do eterno retorno do mesmo enquanto tese ética;
    - Nietzsche, Pessoa e as "verdades sangrentas".

    Grato pela atenção e pelo espaço.

    Abraços!

    @eta.

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  4. Caro Aetano,

    Obrigado pelo seu comentário e pelas sugestões que traz. Também aprecio Nietzsche, como indiquei. Apenas, eu quis chamar atenção, mais uma vez (volto a isso freqüentemente, neste espaço) para a diferença entre um poema e uma proposição. Seu comentário ao poema, além de inteligente, como foi, seria inteiramente pertinente, se não se referisse a um poema – e a um esplêndido poema – mas a uma proposição que simplesmente defendesse o remorso, no sentido comum da palavra.

    Observo também que não tive a intenção de subscrever todos os comentários de Fernando Pessoa sobre Nietzsche. Citei-os apenas a título de informação, porque você trouxe à tona o tema da relação do primeiro com o segundo.

    Grande abraço

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  5. Caro Antonio,

    Muito interessante essa troca sua com o Aetano. Lembro-me ter lido, há varios anos, bastante coisa de Pessoa sobre Nietzsche - críticas firmes em geral.

    De fato, me parece que o pensamento dos dois não poderia ser mais desigual. Em Pessoa não há uma mera valorização conceitual do Paganismo em oposição ao Cristianismo. O poeta era, de fato, praticante de uma religião politeísta, com crenças e rituais definidos - uma tradição. Essa sua crença está exposta diretamente em vários escritos (não tenho tempo agora de procurar as referências, mas uma obra completa dele certamente incluirá esses ensaios), além de ser demonstrada por sua prática da astrologia e sua ligação com o ocultista Aleister Crowley.

    Não vejo como conciliar uma trasnvaloração de todos os valores com o tradicionalismo greco-romano e o ocultismo de Pessoa.

    Por outro lado, não podemos ler, como você bem mostrou, os poemas como se lê ensaios. E certamente há inúmeros trechos da poesia de Pessoa que remetem a visões de mundo completamente diversas das dele mesmo e talvez até próximas da de Nietzsche.

    Agradeço pela ótima seleção de poemas, que, como você costuma dizer, despertam em seus leitores o uso de todas as faculdades emocionais e intelectuais. E impulsionam as mentes inquietas dos comentaristas e do autor deste blog para essas belas trocas de impressões e idéias.

    grande abraço,
    Lucas

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  6. Caro Cícero,

    Li as alterações que vc fez na tradução e na interpretação do poema. O poema, a tradução e a sua interpretação são sublimes. Mas quero dizer que a contraposição que eu tentei fazer não foi entre o aforismo e o poema de Borges, mas entre o primeiro e uma possível interpretação do segundo. Considerando que o poeta está sendo finamente irônico (algo que vc mesmo considerou), o poema constitui-se, então, num argumento sem nenhuma ponta de remorso e, por conseguinte, numa poderosíssima defesa da escolha do "poeta-artista". Algo soaria mais fino aos ouvidos de um nietzscheano? Não estaria sendo o aforismo de Nietzsche, então, apenas uma forma grosseira de dizer a mesma coisa?
    Prometo, como já disse, analisar mais detidamente a questão. Essas linhas são apenas para apresentar, ligeiramente, um novo prisma e para dizer que, de fato, se o dito acima era o que eu queria dizer, a minha postagem deixou a desejar.

    Cordiais saudações.

    @eta

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  7. Em tempo: acabei utilizando, na última postagem, o termo "contraposição", termo este que não considero adequado para os fins a que me propunha. Na verdade, a intenção foi oferecer uma outra visão de mundo para aqueles q porventura enxergassem no poema não a tragicidade que é uma existência feita de escolhas e renúncias, mas a velha e corriqueira insatisfação com o rumo que a vida do poeta (e a nossa) tomou, em razão dos caminhos escolhidos. Para quem interpretasse assim e se reconhecesse nesta interpretação, eu quis dizer que a vida e o poema poderiam ser lidos de um outro modo.
    Enfim, procuro pensar sempre, com Nietzsche, que tudo é interpretação, razão por que incabível qualquer tentativa de contraposição.

    Abraços, Cícero!

    @eta

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  8. Aetano,

    acho que o que você está dizendo é perfeitamente plausível, mesmo porque Nietzsche era um poeta-pensador. A minha objeção, como eu já disse, foi apenas a uma interpretação muito unidimensional do poema, como se ele se reduzisse a uma proposição: o que jamais ocorre num grande poema, como penso ser esse.

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  9. AMADO MESTRE,


    Sempre analiso com cuidado todos os meus conceitos críticos sobre quaisquer temas e, principalmente, os filosóficos. Por isto, não teci nenhum outro comentário ao longo deste debate, muito estimulante por sinal. Mas há algo que discordo do que você disse: " Comparado com ele, infinitamente profundo e rico, o aforismo de Nietzsche é superficial e pobre."
    Creio que esse aforismo é bastante profundo e rico, independentemente de ser comparado ou não ao poema, pois: "Não cometamos covardia em relação a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso." Nietzsche aqui propõe que sejamos verdadeiros com nós mesmos, que valorizemos o que somos independentemente das escolhas ou tropeços que nossas ações possam ter ocasionado, que sigamos em frente sem lamentações porque, ainda assim somos nós mesmos, sem alterações ou "mesquinharias".Concordo com Aetano quando demonstra haver correspondência com "o retorno eterno do mesmo" - tese filosófica que não pode ser assim considerada "pobre e superficial". Algo que nos faz pensar, que nos instiga, que tem luz própria, que provoca embates, que lança dúvidas não pode ser , deste modo, apenas superficial e pobre, certo Mestre?



    ABRAÇO FORTE!
    ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.

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  10. Adriano,

    Insisto que as proposições filosóficas são superficiais e pobres, em comparação com os poemas. Isso porque elas são sempre unilaterais, em comparação com eles.

    Tomemos a proposição de Nietzsche: ela diz que é covardia nos arrependermos dos nossos atos depois de fazê-los. Talvez isso seja verdadeiro em algumas situações. Em outras, podemos achar o oposto: que é preciso mais coragem para reconhecer os erros cometidos.

    Segundo você, a proposição de Nietzsche nos exorta a sermos verdadeiros em relação a nós mesmos, “que valorizemos o que somos independentemente das escolhas ou tropeços que nossas ações possam ter ocasionado [...]”

    Mas desde quando Nietzsche pensa que uma pessoa tem a obrigação de coerência absoluta consigo mesma? O fato é que poucos pensadores foram tão descuidados com a coerência quanto ele.

    Na verdade, há trechos da obra de Nietzsche que indicam que ele também se permitia sentir remorso. No § 351 de “Humano, demasiado humano”, ele fala de “Remorsos após reuniões sociais”, dizendo:

    “Por que temos remorsos após as reuniões sociais de costume? Porque tratamos levianamente coisas importantes, porque ao conversar sobre pessoas não falamos com inteira lealdade ou porque nos calamos quando deveríamos falar, porque oportunamente não nos levantamos e saímos, em suma, porque nos comportamos em sociedade como se pertencêssemos a ela”.

    Veja bem: ele sente remorsos por:

    1. Ter tratado levianamente coisas importantes;

    2. Não ter falado com inteira lealdade;

    3. Ter-se calado quando deveria ter falado;

    4. Não ter oportunamente se levantado e saído;

    5. Ter-se comportado em sociedade como se a ela pertencesse.

    Devemos censurá-lo, por não ter sido fiel a si mesmo, ao se arrepender?

    No segundo tomo (infelizmente não traduzido para o português) do mesmo livro, no § 87, falando do falso elogio, ele diz que

    “o elogio indevido causa, no final das contas, muito mais remorso do que a repreensão indevida, provavelmente apenas porque, através do elogio forte demais, expomos o nosso juízo muito mais do que através da repreensão forte, mesmo injusta”.

    Ou seja, ele sentia remorso quando elogiava demasiadamente uma pessoa, porque com isso revelava uma fraqueza sua. Devemos censurá-lo por não ter sido fiel a si mesmo, ao se arrepender?

    Pense bem: não é loucura achar que uma ação que eu tenha praticado ontem não possa me prejudicar hoje, ou que uma ação que eu pratique hoje não possa me prejudicar amanhã? E, se a minha ação de ontem me prejudica hoje, por que diabo de obrigação moral eu não tenho o direito de reconhecer isso? Devo mais fidelidade ao que fui ontem do que ao que sou hoje? E uma ação minha que me prejudique não é um erro? Ninguém nunca erra? Não serei mais fiel ao que sou hoje se reconhecer que posso ter estado errado ontem, de modo a me preparar para evitar a repetição desse erro? Não há mais coragem em reconhecer o erro do que em escamoteá-lo?

    O grande físico Niels Bohr dizia, com razão, que “uma grande verdade é uma afirmação cujo contrário é também uma grande verdade”. Assim é esse aforismo de Nietzsche. É que uma proposição, uma verdade, um aforismo afirma apenas um lado das coisas, ou não afirma nada. Uma proposição não pode se contradizer; do contrário, ela se anula, como dizia Wittgenstein. Afirmar ao mesmo tempo uma proposição e a sua contraditória é como pôr uma carta na mesa e, em seguida, retirá-la: é um ato sem efeito.

    O poema, por outro lado, é capaz de ter todos os lados ou nenhum: ele é capaz de se contradizer, porque ele a sua função não é afirmar nada: ele não é um ato, como uma proposição, mas uma coisa: ele simplesmente é. Nós é que dizemos coisas em torno dele.

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  11. CICERO CICERO!

    Não é à-toa que o considero meu Mestre. Como é bom cutucar o Leão! Amo-te muito, meu poeta! Felicidades!


    Adriano Nunes.

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  12. Prezado Antônio Cícero...

    Ponderando sobre sobre as considerações postadas, percebo que sua intervenção, diante dos comentários de Aetano, sobram em oportunidade, na medida que, organizando os potes com suas respectivas tampas,indicam uma "necessária" delimitação em nossa vivência e produção cultural.Porém, já de plano, cabe-me informar que não coloquei as aspas acima por uma mera questão de destaque.
    Minha ressalva se deve ao fato de enxergar a necessidade de uma maior coordenação entre os múltiplos aspectos que se enredam na percepção do homem junto ao meio que lhe cerca, distanciando-me de uma abordagem Cartesiana que vem impondo uma desastrosa fragmentação do nossa produção cultural.
    Hoje vivemos uma distenção, onde, em que pese os ditos elementos filosóficos cartesianos, temos dificuldade de costurar esta imensidade de informações que nos chegam, fazendo de nós malabaristas, entre o estético e o ético.
    Concordo com você Cícero, a poesia transcencede, e o dito remorso...a possibilidade das "outras vidas" ... é significativa, mas verifico que dita "culpa poética" é algo mais comum do que se pensa....
    Talvez.. um dia possamos, ao invéz de termos tantos alcoolatras, drogadidos e malucos em hospícios, tenhamos um aumento de pessoas criativas em nosso meio...

    Em que pese eu sempre ter achado que o Natal do vizinho era sempre mais bacana que o lá de casa, ninguém vive a vida de niguém e, se a dita transcendência ( a poesia...) for reduzida a mímica, de nada valeu a dor e a agustia pela vida que não vivi....

    Estamos precisando rever certos paradígmas,e abrir a porta dos "guetos"....

    O MUNDO PRECISA RESPIRAR....

    Segue aí um trecho de D. QUIXOTE...
    Onde o poeta tenta explicar sua poesia a um filósofo....

    "Nisto, avistaram trinta ou quarenta moinhos de vento dos que há naqueles campos, e assim como D. Quixote os viu, disse ao seu escudeiro:

    - A ventura vai guiando as nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; pois vê lá, amigo Sancho Pança, aqueles trinta ou pouco mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, pois esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus varrer tão má semente da face da terra.

    - Que gigantes? - disse Sancho Pança.

    - Aqueles que ali vês - respondeu seu amo -, de longos braços, que alguns chegam a tê-los de quase duas léguas.

    - Veja vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali aparecem não são gigantes, e sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as asas, que, empurradas pelo vento, fazem rodar a pedra do moinho.

    - Logo se vê - respondeu D. Quixote - que não és versado em coisas de aventuras: são gigantes, sim; e se tens medo aparta-te daqui, e põe-te a rezar no espaço em que vou com eles me bater em fera e desigual batalha.

    E, isto dizendo, deu de esporas em seu cavalo Rocinante, sem atentar às vozes que o seu escudeiro Sancho lhe dava, advertindo-lhe que sem dúvida alguma eram moinhos de vento, e não gigantes, aqueles que ia acometer. Mas ele ia tão certo de que eram gigantes, que nem ouvia as vozes do seu escudeiro Sancho, nem via o que eram, embora já estivesse bem perto, antes ia dizendo em altas vozes:

    - Non fuxades, cobardes e vis criaturas, que um só cavaleiro é este que
    vos acomete.

    Nisto se levantou um pouce de vento, e as grandes asas começaram a girar, em vista do qual, disse D. Quixote:

    - Ainda que movais mais braços que os do gigante Briaréu, haveis de pagar-me.

    E, isto dizendo, e encomendando-se de todo coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que em tal transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança enristada, arremeteu a todo o trote de Rocinante e investiu contra o primeiro moinho que tinha à frente; e ao lhe acertar uma lançada na asa, empurrou-a o vento com tanta fúria que fez a lança em pedaços, levando consigo cavalo e cavaleiro, que foi rodando pelo campo muito estropiado. Acudiu Sancho Pança ao seu socorro, a todo o correr do seu asno, e ao chegar viu que não se podia mexer: tamanho fora o tombo que dera com ele Rocinante.

    - Valha-me Deus! - disse Sancho. - Eu não disse a vossa mercê que visse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e só o podia ignorar quem tivesse outros na cabeça?

    - Cala, amigo Sancho - respondeu D. Quixote -, que as coisas da guerra mais que as outras estão sujeitas a contínua mudança: quanto mais que eu penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestão que me roubou o aposento e os livros tornou esses gigantes em moinhos, para me roubar a glória do seu vencimento, tal e tanta é a inimizade que me tem; mas, ao cabo do cabo, de pouco valerão as suas más artes contra a bondade da minha espada.

    - Que Deus faça o que puder - respondeu Sancho Pança."

    E que os ventos continuem girando os moinhos e existão gigantes e feras....

    Pois, assim, continuaremos a ser poetas....

    SUISSO

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  13. Caro Antonio Cícero,

    Acho que me fiz compreender, afinal. Mas, ainda assim, gostaria de desenvolver aqui a minha interpretação do poema do Borges. De antemão, esclareço que corro tamanho risco mais por contar com a sua habitual generosidade e tolerância, do que por acreditar na plausibilidade dessa minha perspectiva.

    Como já disse, o poema contém uma grande ironia. Ou seja, o poeta não estaria lamentando as possibilidades perdidas, o caminho que não se seguiu, as vidas que não foram vividas. Ao contrário. De modo assombrosamente irônico, o poeta reafirma suas escolhas e as suas renúncias, morde-as de novo, todas, e novamente, e assim sucessivamente (daí pq “remordimiento” ou “remordimento”).

    Sob essa perspectiva, o poema traduz a ideia do “eterno retorno do mesmo”. Segundo Scarlett Marton, uma das interpretações dessa formulação nietzscheana é a de que “a repetição eterna de todas as coisas implicaria não só viver de novo o que se escolheu, mas ter de viver outra vez o que não se quis.” (1).

    Ora, mas pq o poeta afirma de tal modo e em toda a sua inteireza a sua vida? Por que quer mordê-la e remordê-la, infinita e sucessivamente, naquilo que ela tem de bom e de ruim? Isso o faz o poeta pq de todas as vidas possíveis, ele viveu aquela que mais pode ser vivida. Ele se sabe artista e todo artista é dotado da possibilidade de viver uma miríade de existências outras que não a dele: “... ao viajar, através da arte, do pensamento, do conhecimento, da imaginação -e das ruas, dos espaços, dos mares, dos céus- ele é capaz de conhecer incontáveis possibilidades que enriquecem a sua vida finita, tornando-a virtualmente infinita.” (2).

    O poema, assim, tece um grandiloqüente elogio à arte – lugar onde não há coerência – e ao artista – pessoa em que a subjetividade é múltipla, vária, heteronímica. Desse modo, o poeta desdenha do saber “consciente”, do senso comum, da moral de rebanho, da heteronomia (tanto que defrauda as normas paternas, justamente as paternas).

    Portanto, o “remordimento” do poeta é “um dionisíaco dizer-sim ao mundo”, ao seu mundo, tal como ele foi, como ele é, e como será. E a superação do niilismo, que a vontade de uma outra vida, que não a de artista, encerra, dá-se com a ironia das ironias: a arte é o que entretece “naderias”.

    Não resta dúvida, o poeta é um fingidor.

    1. “O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético?”. In: “Extravagâncias”. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, p. 89.
    2. Cícero, Antonio. “O moderno e o pré-moderno”. Folha de São Paulo, 22/03/08. O trecho, aqui adaptado ao “poeta-artista”, no original se refere ao homem moderno.

    Muito grato pelo espaço.

    @eta.

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  14. Aetano,

    parabéns pela sua nova interpretação, que é muito bonita. O feito de um grande poema está em mobilizar o melhor de nós para essas diferentes e estimulantes leituras.

    Abraço

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  15. Muito grato, Antonio Cicero. Muito grato mesmo. Fui apenas motivado pela constatação de q um poema q se referia às "simétricas porfias" merecia uma outra leitura.
    Mas penso ser desnecessário dizer q entre a sua - genial q é - e a minha - pobre da minha! - há uma gigantesca assimetria.

    @eta

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  16. Aetano,

    você está sendo muito modesto. Não há tal assimetria entre nossas interpretações. O mérito que tive foi apenas estimular você a ler o poema do Borges com a atenção e o cuidado que ele merecia.

    Abraço

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  17. Que maravilha esta caixa de comentários. Somente em uma casa com um anfitrião tão generoso e visitantes especiais poderia ocorrer tal fenômeno.
    Por isso repito, o blog Acontecimentos é bússola, radar e farol.
    Mariano

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  18. Caros, me parece que quando falamos de Pessoa muitas vezes deveríamos estar falando de Caeiro, Alvaro de Campos, Ricardo reis, Bernardo Soares. Assim como Nietzsche, Pessoa, o poeta não se importava em se contradizer. Coerência não era exatamente aquilo que buscava. Ele escreve: "não tenho nenhuma individualidade. Sou como o mundo."
    Pois. É sabido que ele foi crítico de NIetzsche, e quem leu suas obras em prosa (ou mesmo somente o post do Antonio Cícero) sabe disso. Porém, ao assumir a "persona poética" de Alberto Caeiro é inegável que o Pessoa místico e interessado em metafísica e ocultismo abre espaço para o "argonauta das sensações verdadeiras", claramente avesso à metafísica e ao transcendente. O poeta sensacionista. Nesse sentido, no ataque à metafísica, vejo, sim, uma grande semelhança entre Nietzsche e Caeiro.

    Um forte abraço e obrigada por esse espaço tão estimulante e por toda a sua generosidade.

    Bárbara
    Rio de Janeiro

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  19. Cícero, estava lendo algumas de suas postagens e acabei nesta. Ando escrevendo sobre a relação entre Spinoza, Nietzsche e Pessoa; por isso, achei conveniente lhes indicar uma bibliografia interessante:

    AZEVEDO, António. Pessoa e Nietzsche: subsídios para uma leitura intertextual. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

    Há também o magnífico livro do José Gil "Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações", no qual o filósofo português (fortemente influenciado por Deleuze) faz uma análise esplêndida da gênese heteronímica.

    Abraço,

    Gustavo.

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  20. Gustavo,

    em meu ensaio "Fernando Pessoa: poesia e razão" (in Serrote. Uma revista de ideias. Nº1, Lisboa: dezembro, 2010), proponho uma gênese inteiramente diferente -- nada deleuziana -- da heteronímia pessoana.

    Abraço

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