6.7.08

Claudia Roquette-Pinto: "Sitio"

Sitio

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
_ mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: - Pai!
acho que um bicho me mordeu! assim
que a bala varou sua cabeça?



De: ROQUETTE-PINTO, Claudia. Margem de Manobra. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2005.

6 comentários:

  1. O menino peregrino
    Não conhece o desatino
    Seu destino
    Debaixo do telhado de zinco
    Um labirinto
    Cheio de reentrâncias
    Casa, prazeres, muro
    Às vezes um porto seguro
    Às vezes outros saberes
    Outros seres
    Som e batucada
    Até a alta madrugada
    No meio o zumbido ardiloso
    Um líquido mal-cheiroso
    Destempero da vida
    E uma bala perdida.

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  2. Lindo, lindo. Não a conhecia. Obrigada pelo poema.

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  3. maravilha, poeta!

    que tocante, que jogo de palavras e imagens!

    me ficou na cabeça a letra de "o herói", do caetano, e reminiscências dos romances da patrícia melo.

    pois é. "sempre quis tudo o que desmente esse país encardido".

    beijo grande!

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  4. Prezado Antonio Cícero,
    Assisti nesse instante um jornal na televisão narrar um episódio semelhante ocorrido ontem na Tijuca.
    Belo poema; pobre Rio de Janeiro.
    Um abraço,
    João Renato.

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  5. Reverso

    A poesia é pouca
    para resgatar o desespero.

    Pomar de metáforas,
    canteiro de músicas,
    mistérios e mistificações
    maduramente inúteis,

    enquanto a vida ali explode:
    áspera, acidental, rombuda.

    Nesta hora,
    há um homem varado com sua agonia:
    um homem com seu grito,
    um homem com seus ossos,
    um homem ferido
    com seu suor.

    Sim, meu poema é raiva,
    raiva de ser só palavras.

    Quando poderia ser
    músculos ou porradas,
    pedra na praça, espingarda,
    tiro na cabeça da injustiça.

    Meu verso, porém, é dor
    Dor de ser somente verso.

    Do livro Fala, Favela - de Adriano espínola

    PS: Caro Antônio, em visita ao RJ, ano passado, por ocasião de um seminário sobre poesia na UFF, tive o prazer de ouvir esse poema da Cláudia recitado pela profa. Iumna da USP, que dele fez uma análise surpreendente. Na mesma linha, sensível à essa mesma tônica social, deixo aqui registrado esse poema do Adriano, meu atual poeta de cabeceira, cuja obra me toca profundamente. Abraços.
    Leonardo/Goiânia

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  6. observador,

    maravilhosamente incômodo.
    aliás é a marca da obra dela.

    transfigurar palavras a ponto de elas alcançarem além da natureza que lhes foi fadada no dicionário.

    "Por tudo isso é que eu me perco
    em coisas que, nos outros,
    são migalhas."

    (Alma Corsária - Claudia Roquette-Pinto)

    obrigada pela presença de Claudia aqui.

    um abraço,

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