30.5.12
Noemi Jaffe e Leda Cartum: "Poemas fios de ovos"
"nunca gostei de fios de ovos"
nunca gostei de fios de ovos
me pareciam oleosos;
ela não, sempre gostava deles
do amarelo de sua pele
do brilho dos seus cordões
de passá-los em grupos de dois
ou três, se ela assim quisesse.
gostava também de outros doces
mas quase sempre de ovos
patos, cobras, fósforos
o problema é que eu, doceira
não tenho habilidade na área
dos ovos. e esses doces de fios
eram caros, difíceis.
mas mesmo sendo raros
ela se fartou de chupá-los
hoje ela é grande, uma adulta
não come mais doces, só frutas
os fios de ovos da padaria
estão em silêncio na memória
dela e minha, guardados
devem estar misturados
com outros fios, elétricos,
químicos, líquidos
mas não tem importância
que fiquem assim na lembrança
ainda não sei fazê-los
nem quero; chega lembrá-los.
Noemi Jaffe
Noemi Jaffe é escritora, autora de Todas as coisas pequenas (São Paulo: Hedra, 2005)e Quando nada está acontecendo (São Paulo: Martins Fontes, 2011).
"minha mãe não me fazia fios de ovos"
minha mãe não me fazia fios de ovos
mas sempre me pegou no colo
mesmo que ela procurasse
me agradar com mais que chocolate
o que mais gosto nela é de outra ordem
é antes qualquer coisa que me foge
à explicação porque não é isto
que está na ideia ou no juízo
não está nos fios ou no detalhe
já que integra uma outra arte
a de saber sem precisar afinar
ou afiar ou refinar o que já está
feito: um saber de antes do ovo virar fio
e que por isso cobre em qualquer frio
saber de raiz, de pedra e mãe
que percebe das coisas o tamanho
e não procura ser o que não é
é um saber que se come de colher
em porções sempre generosas
cheias de excessos e de sobras
minha mãe me ensina a não enganar a fome
e a sempre ir com tudo porque tudo pode
minha mãe me ensina a comer o ovo inteiro:
a clara, a casca, a gema e o recheio.
Leda Cartum
Leda Cartum é escritora, autora de Pequeno dicionário calendário (no prelo).
27.5.12
Adriano Espínola: "Caminha e repara"
Caminha e repara.
No mundo o mesmo segundo
que junta separa.
A sombra da amendoeira
varre o chão de sol e poeira.
ESPÍNOLA, Adriano. Trapézio. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011.
24.5.12
Luís de Camões: "Amor, co a esperança já perdida"
Amor, co a esperança já perdida
Amor, co a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.
Que queres mais de mim, que destruída
me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar-me, que não sei
tornar a entrar onde não há saída.
Vês aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto quis aquela que eu adoro:
nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado,
contenta-te co as lágrimas que choro.
CAMÕES, Luís de. Lírica completa II. Sonetos. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda: 1980.
21.5.12
Entrevista a Marcos Augusto Gonçalves sobre o livro "Poesia e filosofia"
A seguinte entrevista, dada a Marcos Augusto Gonçalves, foi publicada ontem no caderno "Ilustríssima" da Folha de São Paulo:
A ideia e a lira
Para Antonio Cicero, poesia e filosofia são nuvens diferentes
RESUMO O poeta e filósofo carioca Antonio Cicero comenta seu ensaio recém-lançado "Poesia e Filosofia", que reflete sobre os limites entre a atividade filosófica, feita de ideias e de caráter abstrato, e a prática poética, constituída de palavras e eminentemente concreta. Em suas palavras, trata-se de "nuvens diferentes".
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EM SUAS PALESTRAS e apresentações públicas, Antonio Cicero já se habituou a responder perguntas sobre letras de canções, poesia e filosofia, atividades que coexistem em seu universo intelectual e criativo. Se as semelhanças entre poema e letra de música são evidentes, no caso da filosofia e da poesia a distância que as separa é bem maior do que se poderia, irrefletidamente, supor.
"Penso que são atividades humanas inteiramente diferentes uma da outra", afirma Cicero, 66, em seu novo livro, "Poesia e Filosofia" [Civilização Brasileira, 144 págs., R$ 34,90] , publicado na coleção Contemporânea, dirigida pelo pelo professor de literatura Evando Nascimento.
O volume reúne argumentos para demonstrar, com base na reflexão e na experiência do autor, que poeta e filósofo podem até viver com a cabeça nas nuvens, como imagina o senso comum -mas nuvens diferentes: "A filosofia deve ser um empreendimento extremo da razão, a poesia, não". Enquanto o discurso da filosofia encerra uma proposição sobre as coisas, o valor da poesia, segundo Cícero, "não é dado pelo que fale sobre coisa alguma".
Sua finalidade "é o poema, a obra poética, feita para ser fruída esteticamente". Ou, como respondeu o poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-98) ao pintor Edgar Degas (1834-1917), que pretendia fazer poesia por ter muitas ideias: poemas são escritos com palavras, não com ideias.
Cicero estudou filosofia no Rio de Janeiro, na década de 1960, concluiu o curso na Universidade de Londres e fez pós-graduação na Universidade Georgetown, nos EUA.
Em 1995, publicou o ensaio filosófico "O Mundo desde o Fim" (Francisco Alves); três anos depois, veio o volume de poesia "Guardar" (1996), estreia em livro do poeta já conhecido pelas letras cantadas pela irmã Marina Lima.
Poesia e filosofia continuaram sendo trabalhadas em canteiros de obras paralelos: em 2005, veio a antologia de ensaios "Finalidades sem Fim" (Companhia das Letras). Uma amostra de sua produção poética está na antologia que a EdUerj lançou em 2010, com apresentação de Alberto Pucheu.
Na entrevista a seguir, resultado de conversas telefônicas e troca de e-mails, ele fala sobre o livro.
Você afirma que um ensaio de filosofia exige sobretudo aplicação para desenvolver e explicar ideias, enquanto a poesia depende da dedicação do espírito, recursos, faculdades, esforços. Essa afirmação parte de uma experiência pessoal. Ela é generalizável?
Talvez não seja a rigor universalizável, mas parece ser em certa medida generalizável, pois o fato é que, pelo menos desde Homero, muito mais poetas do que filósofos dão importância, na produção de poemas, ao que chamam de "inspiração", isto é, a algo que escapa de seu controle e de sua decisão racional.
Em sua opinião um poema, a rigor, não serve para nada: ou sua leitura recompensa a si própria ou não tem nenhum valor. Você diria que essa afirmação se aplicaria às artes de uma maneira geral?
Sim. [Paul] Valéry [1871-1945] dizia que um poema devia ser uma festa do intelecto. Penso que idealmente a apreciação de um poema enquanto poema é uma festa não apenas do intelecto, mas da interação de todas as nossas faculdades -razão, sensibilidade, sensualidade, emoção, senso de humor, intuição- entre si e com nossa experiência, cultura, conhecimento etc. Idealmente, o mesmo vale para a apreciação de todas as artes. Essa festa já vale por si.
Você reitera a fórmula de Mallarmé, segundo a qual poesia se faz com palavras, e não com ideias. Os filósofos clássicos que expunham suas ideias sob a forma poética não faziam poesia, mas filosofia em verso? Você não poderia ser acusado de formalista?
Seria uma acusação sem fundamento. Veja bem: o pintor Degas estava explicando que pensava poder escrever um poema, já que tinha muitas ideias. Mallarmé então respondeu que um poema não se escreve com ideias, mas com palavras. Invertamos a situação. Suponhamos que Mallarmé tivesse dito a Degas que pensava poder fazer uma pintura, já que tinha muitas ideias. Que lhe responderia Degas, com toda a probabilidade?
Que uma pintura não se faz com ideias, mas com tinta e movimentos da mão e do pincel. Ou seja, quando Mallarmé diz a Degas que a poesia não se faz com ideias, mas com palavras, ele está dizendo que a poesia, não menos que a pintura, é arte, e não filosofia.
Um poema é uma obra, um objeto, não menos que uma pintura. Esta é feita com tinta, mão, pincel; aquele, com palavras. É por essa razão que se pode estudar a filosofia de filósofos que não possuem obra, como Sócrates, mas não se pode falar da poesia de quem jamais haja feito um poema.
No entanto, isso não quer dizer que um poema -ou uma pintura- não contenha ideias. Um poema é feito de palavras e ideias, formas e conteúdos. O que ocorre é que, num poema, as ideias são inseparáveis das palavras, e os conteúdos, das formas. Um poema não pode ser parafraseado, isto é, dito em outras palavras.
Quanto aos filósofos pré-socráticos, que escreviam em versos, é preciso, de fato, não esquecer que uma sequência de versos não chega a ser necessariamente um poema, e que um poema não é necessariamente feito de uma sequência de versos.
Na Grécia arcaica, escreviam-se não só obras de filosofia, mas também de medicina em versos. Essas obras não eram poemas, como, aliás, já observava Aristóteles, exatamente porque, ao contrário do que ocorre na poesia, nelas o conteúdo pode ser separado da forma, assim como as ideias, das palavras que as exprimem.
É possível que se faça um poema filosófico inteiramente satisfatório como literatura e filosofia?
Talvez o que tenha chegado mais perto disso seja o longo poema "Da Natureza das Coisas", de Lucrécio [c. 96 a.C.-c. 55 a.C.]. No entanto, o próprio Lucrécio considerava que seu maior mérito era ter exposto a filosofia de Epicuro em "luminosos versos, a tudo tocando com a graça das Musas". Além disso, a meu juízo, os trechos mais poéticos do poema não são os mais interessantes filosoficamente e vice-versa.
A grande dificuldade é que a filosofia, quando maximamente ambiciosa, consiste num empreendimento racional, crítico, abstrato, enquanto o poema é sempre concreto, no sentido de consistir numa síntese indissociável de múltiplas determinações semânticas, sintáticas, morfológicas, fonológicas, rítmicas etc.
Assim, enquanto a ambiguidade, a anfibologia, a polissemia, a equivocação, a imprecisão, em suma, a "sujeira" linguística são características a serem evitadas (ou são tomadas como "males necessários") pela filosofia maximamente ambiciosa, elas são o próprio material com o qual a poesia trabalha.
O que é mais difícil, traduzir poemas ou conceitos filosóficos?
Traduzir poemas. Como, na poesia, o significado não se separa do significante, é a tradução de poemas que beira a impossibilidade. É por isso que o poeta Haroldo de Campos [1929-2003] empregava a palavra "transcriação" para a tentativa de tradução de poemas. Já os conceitos filosóficos são -ou devem ser- perfeitamente traduzíveis. A pretensão de que não o sejam não passa, a meu ver, de mistificação indigna.
Filósofo e poeta não se aproximam ao serem personagens deslocados da lógica do desempenho que marca a vida contemporânea?
Por esse ângulo sim, eles se aproximam. Não é à toa que o senso comum acha que tanto um quanto o outro vivem com a cabeça nas nuvens: para ele, nem um nem o outro têm o pé na Terra.
No entanto, como mostro no livro, as nuvens do poeta não são normalmente as do filósofo. Enquanto este se interessa, por exemplo, pelo "ser enquanto ser", pela relação entre a matéria e a ideia, pela natureza da verdade etc., o poeta fala do amanhecer, do amor que sente por alguém, da morte que se aproxima, de certo tom de azul, dos sapatos usados, da rua que vê pela janela do ônibus...
Se, a seu ver, poesia e filosofia são inteiramente distintas, o mesmo não se pode dizer da atividade do letrista e do poeta. Quais são as semelhanças e diferenças entre letra de canção e poema?
A meu ver, a letra de canção é uma forma de poesia. Há uma diferença evidente, entretanto, entre um poema destinado a ser cantado e escutado (uma letra de canção) e um poema destinado a ser lido. É que este é autotélico: ele já constitui a obra de arte, a ser fruída por um leitor; já aquele é heterotélico: ele faz parte da canção, e é esta que é a obra de arte, a ser fruída por um ouvinte.
Assim, para mim, uma coisa é fazer um poema para ser lido; outra coisa é fazer uma letra de canção. É que, quando faço um poema, penso apenas nele mesmo; mas quando faço uma letra de canção -e normalmente faço letras para melodias que algum compositor ou compositora me oferece-, faço-a para também corresponder às notas e ao espírito da melodia.
Isso não quer dizer, porém, que um poema feito para ser lido seja necessariamente melhor do que uma letra de canção.
A prova disso é que os poemas líricos da Grécia antiga, como os de Safo, Alceu e Anacreonte, que fazem parte importante do cânone ocidental de poesia, eram o que hoje chamamos de "letra de canção". Afinal, o próprio epíteto "lírico" vem de "lira". Outra prova disso é que um cancionista como Caetano Veloso, por exemplo, é com certeza um dos nossos maiores poetas.
A ideia e a lira
Para Antonio Cicero, poesia e filosofia são nuvens diferentes
RESUMO O poeta e filósofo carioca Antonio Cicero comenta seu ensaio recém-lançado "Poesia e Filosofia", que reflete sobre os limites entre a atividade filosófica, feita de ideias e de caráter abstrato, e a prática poética, constituída de palavras e eminentemente concreta. Em suas palavras, trata-se de "nuvens diferentes".
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EM SUAS PALESTRAS e apresentações públicas, Antonio Cicero já se habituou a responder perguntas sobre letras de canções, poesia e filosofia, atividades que coexistem em seu universo intelectual e criativo. Se as semelhanças entre poema e letra de música são evidentes, no caso da filosofia e da poesia a distância que as separa é bem maior do que se poderia, irrefletidamente, supor.
"Penso que são atividades humanas inteiramente diferentes uma da outra", afirma Cicero, 66, em seu novo livro, "Poesia e Filosofia" [Civilização Brasileira, 144 págs., R$ 34,90] , publicado na coleção Contemporânea, dirigida pelo pelo professor de literatura Evando Nascimento.
O volume reúne argumentos para demonstrar, com base na reflexão e na experiência do autor, que poeta e filósofo podem até viver com a cabeça nas nuvens, como imagina o senso comum -mas nuvens diferentes: "A filosofia deve ser um empreendimento extremo da razão, a poesia, não". Enquanto o discurso da filosofia encerra uma proposição sobre as coisas, o valor da poesia, segundo Cícero, "não é dado pelo que fale sobre coisa alguma".
Sua finalidade "é o poema, a obra poética, feita para ser fruída esteticamente". Ou, como respondeu o poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-98) ao pintor Edgar Degas (1834-1917), que pretendia fazer poesia por ter muitas ideias: poemas são escritos com palavras, não com ideias.
Cicero estudou filosofia no Rio de Janeiro, na década de 1960, concluiu o curso na Universidade de Londres e fez pós-graduação na Universidade Georgetown, nos EUA.
Em 1995, publicou o ensaio filosófico "O Mundo desde o Fim" (Francisco Alves); três anos depois, veio o volume de poesia "Guardar" (1996), estreia em livro do poeta já conhecido pelas letras cantadas pela irmã Marina Lima.
Poesia e filosofia continuaram sendo trabalhadas em canteiros de obras paralelos: em 2005, veio a antologia de ensaios "Finalidades sem Fim" (Companhia das Letras). Uma amostra de sua produção poética está na antologia que a EdUerj lançou em 2010, com apresentação de Alberto Pucheu.
Na entrevista a seguir, resultado de conversas telefônicas e troca de e-mails, ele fala sobre o livro.
Você afirma que um ensaio de filosofia exige sobretudo aplicação para desenvolver e explicar ideias, enquanto a poesia depende da dedicação do espírito, recursos, faculdades, esforços. Essa afirmação parte de uma experiência pessoal. Ela é generalizável?
Talvez não seja a rigor universalizável, mas parece ser em certa medida generalizável, pois o fato é que, pelo menos desde Homero, muito mais poetas do que filósofos dão importância, na produção de poemas, ao que chamam de "inspiração", isto é, a algo que escapa de seu controle e de sua decisão racional.
Em sua opinião um poema, a rigor, não serve para nada: ou sua leitura recompensa a si própria ou não tem nenhum valor. Você diria que essa afirmação se aplicaria às artes de uma maneira geral?
Sim. [Paul] Valéry [1871-1945] dizia que um poema devia ser uma festa do intelecto. Penso que idealmente a apreciação de um poema enquanto poema é uma festa não apenas do intelecto, mas da interação de todas as nossas faculdades -razão, sensibilidade, sensualidade, emoção, senso de humor, intuição- entre si e com nossa experiência, cultura, conhecimento etc. Idealmente, o mesmo vale para a apreciação de todas as artes. Essa festa já vale por si.
Você reitera a fórmula de Mallarmé, segundo a qual poesia se faz com palavras, e não com ideias. Os filósofos clássicos que expunham suas ideias sob a forma poética não faziam poesia, mas filosofia em verso? Você não poderia ser acusado de formalista?
Seria uma acusação sem fundamento. Veja bem: o pintor Degas estava explicando que pensava poder escrever um poema, já que tinha muitas ideias. Mallarmé então respondeu que um poema não se escreve com ideias, mas com palavras. Invertamos a situação. Suponhamos que Mallarmé tivesse dito a Degas que pensava poder fazer uma pintura, já que tinha muitas ideias. Que lhe responderia Degas, com toda a probabilidade?
Que uma pintura não se faz com ideias, mas com tinta e movimentos da mão e do pincel. Ou seja, quando Mallarmé diz a Degas que a poesia não se faz com ideias, mas com palavras, ele está dizendo que a poesia, não menos que a pintura, é arte, e não filosofia.
Um poema é uma obra, um objeto, não menos que uma pintura. Esta é feita com tinta, mão, pincel; aquele, com palavras. É por essa razão que se pode estudar a filosofia de filósofos que não possuem obra, como Sócrates, mas não se pode falar da poesia de quem jamais haja feito um poema.
No entanto, isso não quer dizer que um poema -ou uma pintura- não contenha ideias. Um poema é feito de palavras e ideias, formas e conteúdos. O que ocorre é que, num poema, as ideias são inseparáveis das palavras, e os conteúdos, das formas. Um poema não pode ser parafraseado, isto é, dito em outras palavras.
Quanto aos filósofos pré-socráticos, que escreviam em versos, é preciso, de fato, não esquecer que uma sequência de versos não chega a ser necessariamente um poema, e que um poema não é necessariamente feito de uma sequência de versos.
Na Grécia arcaica, escreviam-se não só obras de filosofia, mas também de medicina em versos. Essas obras não eram poemas, como, aliás, já observava Aristóteles, exatamente porque, ao contrário do que ocorre na poesia, nelas o conteúdo pode ser separado da forma, assim como as ideias, das palavras que as exprimem.
É possível que se faça um poema filosófico inteiramente satisfatório como literatura e filosofia?
Talvez o que tenha chegado mais perto disso seja o longo poema "Da Natureza das Coisas", de Lucrécio [c. 96 a.C.-c. 55 a.C.]. No entanto, o próprio Lucrécio considerava que seu maior mérito era ter exposto a filosofia de Epicuro em "luminosos versos, a tudo tocando com a graça das Musas". Além disso, a meu juízo, os trechos mais poéticos do poema não são os mais interessantes filosoficamente e vice-versa.
A grande dificuldade é que a filosofia, quando maximamente ambiciosa, consiste num empreendimento racional, crítico, abstrato, enquanto o poema é sempre concreto, no sentido de consistir numa síntese indissociável de múltiplas determinações semânticas, sintáticas, morfológicas, fonológicas, rítmicas etc.
Assim, enquanto a ambiguidade, a anfibologia, a polissemia, a equivocação, a imprecisão, em suma, a "sujeira" linguística são características a serem evitadas (ou são tomadas como "males necessários") pela filosofia maximamente ambiciosa, elas são o próprio material com o qual a poesia trabalha.
O que é mais difícil, traduzir poemas ou conceitos filosóficos?
Traduzir poemas. Como, na poesia, o significado não se separa do significante, é a tradução de poemas que beira a impossibilidade. É por isso que o poeta Haroldo de Campos [1929-2003] empregava a palavra "transcriação" para a tentativa de tradução de poemas. Já os conceitos filosóficos são -ou devem ser- perfeitamente traduzíveis. A pretensão de que não o sejam não passa, a meu ver, de mistificação indigna.
Filósofo e poeta não se aproximam ao serem personagens deslocados da lógica do desempenho que marca a vida contemporânea?
Por esse ângulo sim, eles se aproximam. Não é à toa que o senso comum acha que tanto um quanto o outro vivem com a cabeça nas nuvens: para ele, nem um nem o outro têm o pé na Terra.
No entanto, como mostro no livro, as nuvens do poeta não são normalmente as do filósofo. Enquanto este se interessa, por exemplo, pelo "ser enquanto ser", pela relação entre a matéria e a ideia, pela natureza da verdade etc., o poeta fala do amanhecer, do amor que sente por alguém, da morte que se aproxima, de certo tom de azul, dos sapatos usados, da rua que vê pela janela do ônibus...
Se, a seu ver, poesia e filosofia são inteiramente distintas, o mesmo não se pode dizer da atividade do letrista e do poeta. Quais são as semelhanças e diferenças entre letra de canção e poema?
A meu ver, a letra de canção é uma forma de poesia. Há uma diferença evidente, entretanto, entre um poema destinado a ser cantado e escutado (uma letra de canção) e um poema destinado a ser lido. É que este é autotélico: ele já constitui a obra de arte, a ser fruída por um leitor; já aquele é heterotélico: ele faz parte da canção, e é esta que é a obra de arte, a ser fruída por um ouvinte.
Assim, para mim, uma coisa é fazer um poema para ser lido; outra coisa é fazer uma letra de canção. É que, quando faço um poema, penso apenas nele mesmo; mas quando faço uma letra de canção -e normalmente faço letras para melodias que algum compositor ou compositora me oferece-, faço-a para também corresponder às notas e ao espírito da melodia.
Isso não quer dizer, porém, que um poema feito para ser lido seja necessariamente melhor do que uma letra de canção.
A prova disso é que os poemas líricos da Grécia antiga, como os de Safo, Alceu e Anacreonte, que fazem parte importante do cânone ocidental de poesia, eram o que hoje chamamos de "letra de canção". Afinal, o próprio epíteto "lírico" vem de "lira". Outra prova disso é que um cancionista como Caetano Veloso, por exemplo, é com certeza um dos nossos maiores poetas.
19.5.12
Zé Miguel Wisnik / Antonio Cicero: "Os ilhéus"
Fiquei feliz de saber que o cantor e compositor Arthur Nogueira postou em seu blog a canção "Os ilhéus", que Zé Miguel compôs ao musicar meu poema do mesmo nome. Orgulho-me muito dessa parceria, de modo que remeto os leitores do Acontecimentos ao belo blog do Arthur: http://arthurnogueira.blogspot.com.br/2012/05/os-ilheus.html.
16.5.12
Fabrício Corsaletti: "do avô guardei"
do avô guardei
o último cinzeiro
a última faca
-- faz algum tempo
o cinzeiro sumiu
desde então
guardo do avô
a última faca
CORSALETTI, Fabrício. Esquimó. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
12.5.12
Sophia de Mello Breyner Andresen: "No poema"
No poema
Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso
Preservar de decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Livro sexto". In: Obra poética. Alfragide: Editorial Caminho, 2011.
8.5.12
Nelson Ascher: "Neblina"
Neblina
Neblina densa, às vezes,
(poder-se-ia quase
cortá-la em cubos como
se fosse gelo) sobe
da terra ou baixa abrupta
do céu, quando se desce
(quem do planalto rume
ao litoral) a Serra
do Mar, à noite, após
a chuva ou antes dela,
nem há como julgar
qual treva, seja a preta
ou seja a branca, é mais
cerrada, sobretudo
porque não se distinguem
(escura sinergia)
sequer uma da outra,
levando a questionar
no meio do caminho
se, posto que amanheça,
há de amanhã sair
o sol de sempre ou mesmo
se à beira mar –quem sabe
dizê-lo- ainda há mar.
ASCHER, Nelson. Algo de sol. São Paulo: Ed. 34, 1996.
6.5.12
Eugénio de Andrade: "Espelho"
Espelho
Que rompam as águas:
é de um corpo que falo.
Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho,
nunca tive outra casa.
É de um rio que falo;
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.
Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.
Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.
E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.
E tudo era água,
água,
desejo só
de um pequeno charco de luz.
De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?
Um corpo amei,
um corpo, um rio,
um pequeno tigre de inocência,
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.
Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.
Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.
De um corpo falei:
que rompam as águas.
ANDRADE, Eugénio. Poemas de Eugénio de Andrade. Org. por Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
5.5.12
Nicolás Gomez Dávila: de "Sucesivos escolios a un texto implícito"
Salvo nos primeiros momentos de entusiasmo revolucionário, a maioria da população, em todo país e em toda época, pertence à centro-direita.
***
A inveja costuma ser a verdadeira mola das indignações morais.
***
O público rarmente elogia um livro porque o admire, geralmente o admira porque o elogiam.
DÁVILA, Nicolás Gomez. Sucesivos escolios a un texto implícito. Barcelona: Altera, 2002.
2.5.12
Carlos Drummond de Andrade: de "A vida passa feito um avião supersônico"
Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos, uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está solitária, nunca está sozinha. Terá sempre uma companhia: a imensa companhia de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos.
ANDRADE, Carlos Drummond de. "A vida passa feito um avião supersônico". Entrevista a Geneton Moraes Neto. In: MORAES NETO, Geneton. Dossiê Drummond. São Paulo: Globo, 2007.