30.9.16

Leiam "O povo de Deus e o fim da política", por Jozafá Batista




Recomendo enfaticamente a leitura do artigo do sociólogo Jozafá Batista intitulado "O povo de Deus e o fim da política". E o recomendo, não por ter sido nele citado -- embora isso, para mim, seja uma honra -- mas porque realmente se trata de um artigo importante, principalmente nos tempos atuais. Ele se encontra aqui:  http://www.juruaemtempo.com.br/o-povo-de-deus-e-o-fim-da-politica/

29.9.16

Antero de Quental: "Nox"




Nox

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!



QUENTAL, Antero de. "Nox". In: VIEGAS, Francisco José (org.). Cem poemas para salvar a nossa vida. Lisboa: Quetzal, 2014.

27.9.16

Rainer Maria Rilke: "Baudelaire": trad. José Paulo Paes




Baudelaire
                        Para Anita Forrer/ em 14 de abril de 1921

Somente o poeta juntou as ruínas
de um mundo desfeito e de novo o fez uno.
Deu fé da beleza nova, peregrina,
e, embora celebrando a própria má sina,
purificou, infinitas, as ruínas:

assim o aniquilador tornou-se mundo.




Baudelaire
                       Für Anita Forrer/ aum 14. April 1921

Der Dichter einzig hat die Welt geeinigt,
die weit in jedem auseinanderfällt.
Das Schöne hat er unerhört bescheinigt,
doch da er selbst noch feiert, was ihn peinigt,
hat er unendlich den Ruin gereinigt:

und auch noch das Vernichtende wird Welt.




RILKE, Rainer Maria. "Baudelaire". In:_____. Poemas. Seleção, tradução e introdução José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

25.9.16

Horácio: Ode 2.14: Trad. de José Agostinho de Macedo




Ode 2.14

Fogem os anos, Póstumo, apressados;
Religiosa Piedade em vão procura
Deter os passos da Velhice e Morte;
Não lhe suspende os golpes.
Inda que intentes aplacar com sangue
De tríplice Hecatombe os dias todos,
O inflexível Plutão, surdo a teus votos,
As Parcas não suspende.
O Triplicado Gerião, e a Tício
Nas tristes ondas prende; à Terra quantos
Devem sustento seu, ou Reis, ou Povo,
Têm de passar a Estige.
Em vão se evita a Guerra, em vão fugimos
Do Adriático Mar as ondas roucas;
Debalde temos medo ao Sul no Outono,
Que os corpos nos ataca.
Do sinuoso Cocito e negro as ondas
Perguiçosas e a vil Prole de Dânao
E do Eólio Sisifo a pena eterna
Verá todo vivente.
Deve deixar-se a Terra, a Casa, a Esposa,
E das que amaste em vida árvores tantas
Nenhuma seguirá rápido Dono,
Mais que o odiado Cipreste.
Então consumirá pródigo Herdeiro
Prenhes Tonéis do Cécubo espumante,
Que ora, tão resguardado e cauteloso,
A cem chaves ferrolha[s].
Com profusão no rico pavimento
O Vinho entornará, mais generoso
Que o Falemo Licor que espuma e corre
Nas Pontifícias Mesas.



Ode  2.14

Eheu fugaces, Postume, Postume,
labuntur anni nec pietas moram    
rugis et instanti senectae        
adferet indomitaeque morti,
non si trecenis quotquot eunt dies,
amice, places inlacrimabilem    
Plutona tauris, qui ter amplum        
Geryonen Tityonque tristi
conpescit unda, scilicet omnibus,
quicumque terrae munere vescimur,    
enaviganda, sive reges        
sive inopes erimus coloni.
frustra cruento Marte carebimus
fractisque rauci fluctibus Hadriae,  
frustra per autumnos nocentem        
corporibus metuemus Austrum:
visendus ater flumine languido
Cocytos errans et Danai genus    
infame damnatusque longi        
Sisyphus Aeolides laboris,
 linquenda tellus et domus et placens
uxor, neque harum quas colis arborum  
te praeter invisas cupressos        
ulla brevem dominum sequetur.
 absumet heres Caecuba dignior
servata centum clavibus et mero    
tinguet pavimentum superbo,        
pontificum potiore cenis.




HORÁCIO. "Ode 2.14". Trad. de José Agostinho de Macedo. In:_____. ACHCAR, Francisco. "Antologia". In: Lírica e lugar comum. Alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: EDUSP, 1994.A

23.9.16

Nelson Ascher: "Neblina"




Neblina


Neblina densa, às vezes,
(poder-se-ia quase
cortá-la em cubos como
se fosse gelo) sobe

da terra ou baixa abrupta
do céu, quando se desce
(quem do planalto rume
ao litoral) a Serra

do Mar, à noite, após
a chuva ou antes dela,
nem há como julgar
qual treva, seja a preta

ou seja a branca, é mais
cerrada, sobretudo
porque não se distinguem
(escura sinergia)

sequer uma da outra,
levando a questionar
no meio do caminho
se, posto que amanheça,
há de amanhã sair
o sol de sempre, ou mesmo
se à beira mar –quem sabe
dizê-lo- ainda há mar.




Nelson Ascher. “Neblina”. In: Algo de sol. São Paulo: Editora 34, 1996.

19.9.16

Alex Varella: "Água marinha"




ÁGUA MARINHA



Dois pedacinhos de mar

duas pedrinhas

de água

duas pedrinhas

de nada

teus olhos fazem existir o mar




VARELLA, Alex. "Água marinha". In:_____. céu em cima / mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

16.9.16

Shakespeare: "T'is the time's plague" / "A tragédia deste tempo": trad. Inês Pedrosa



'T'is the time's plague when madmen lead the blind.

SHAKESPEARE, William. King Lear, act IV, scene I.


A tragédia deste tempo é que os loucos conduzem os cegos.

SHAKESPEARE, William, King Lear, act IV, scene I. In: Pedrosa, Inês (org. e trad.). As lições de vida de William Shakespeare. Alfragide: Dom Quixote, 2016.





13.9.16

Antonio Cicero: "Ícaro"




Ícaro

Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar

Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre

Adeus riquezas de Átalo
vinhos do Mássico
coroas de louro
flautas e liras

Adeus cabeça nas estrelas
adeus amigos
mulheres
efebos
adeus sol:
ouro algum permanece.





CICERO, Antonio. "Ícaro". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2013.

11.9.16

Gastão Cruz: "Até tornar-se fogo"





Até tornar-se fogo

As carruagens cheias como praças
que se movem à luz geral do ensaio
repetem dia a dia a mesma viagem:

os versos partem para a humanidade
mas a humanidade para onde parte?
Sabemos as paragens em que saem

e entram os que irrompem pelo palco;
até tornar-se fogo há-de crescer
continuamente a luz mortal do ensaio




CRUZ, Gastão. "Até tornar-se fogo". In:_____. Óxido. Porto: Assírio & Alvim, 2015.



6.9.16

Giuseppe Ungaretti: "Tramonto" / "Ocaso": trad. Geraldo Holanda Cavalcanti




Ocaso
versa, 20 de maio de 1916

a carnação do céu
desperta oásis
no nômade de amor




Tramonto
versa il 20 maggio 1916

Il carnato del cielo
sveglia oasi
al nomade d’amore




UNGARETTI, Giuseppe. "Tramonto"/"Ocaso". In:_____. "Il porto sepolto" / "O porto sepulto". In:_____. A alegria. Edição bilíngue. Trad. Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2003.

4.9.16

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos: "Mestre, meu mestre querido!"


No domingo passado, no dia 28 de agosto deste ano, a querida Professora Cleonice Berardinelli completou cem anos. Para homenageá-la, publico aqui um poema de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, "Mestre, meu mestre querido!", que a Professora Cleonice, em um dos excelentes ensaios de seu livro Fernando Pessoa: outra vez te revejo... (Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004), declarou ser "poema perfeito e completo":



Mestre, meu mestre querido!

Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.




PESSOA, Fernando. "Mestre, meu mestre querido!". In:_____. "Ficções do interlúdio / Poesias de Álvaro de Campos". In:_____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.  

2.9.16

Arnaldo Antunes: "o que você mais teme"

Agradeço ao Adriano Nunes por me ter lembrado de que hoje é o aniversário de meu querido amigo, o grande poeta Arnaldo Antunes.
Parabéns, Arnaldo!






o que você mais teme
acaba acontecendo


o que você mais quer
acaba acontecendo


o que ninguém espera
acaba acontecendo


o que ninguém consegue
mais conter


acaba
de acontecer




ANTUNES, Arnaldo. "o que você mais teme". In:_____. agora aqui ninguém precisa de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.