31.3.16

Catulo: "quinti, si tibi vis oculos debere catullum" / transliteração por Haroldo de Campos




quinti, si tibi vis oculos debere catullum

Quíncio,
queres que Catulo te deva os olhos
e o que há de mais caro que os olhos?
Não lhe roubes o que é
muito mais caro do que os olhos
ou do que há de mais caro que os olhos.



CAMPOS, Haroldo de. "quinti, si tibi vis oculos debere catullum". In:_____. "Novas transluminuras". In:_____. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.


LXXXII

Quinti, si tibi vis oculos debere Catullum      
aut aliud si quid carius est oculis,  
eripere ei noli, multo quod carius illi      
est oculis seu quid carius est oculis.  



CATULLUS, Gaius Valerius. "Carmen LXXXII: Quinti, si tibi vis oculos debere Catullum". In:_____. Poesies. Paris: Les Belles Lettres, 1949.


29.3.16

Carlos Pena Filho: "Napoleão em Santa Helena"




Napoleão em Santa Helena
                                   a Syleno Ribeiro

Agora vejo, só, como convém
àquele que viveu sem intervalos,
o sol no largo e verde campo e, além,
o mar em torno onde não vão cavalos.

À note, cresce o sonho devastado,
ruína que à luz diária e vã se perde,
vendaval permanente e limitado
por esse mar enorme, inglês e verde.

Mas o sol de Austerlitz em meu ombro,
fúria de glória e pó que me atravessa,
lembra que o fim é nada, o puro assombro
só é devido a tudo que começa.



PENA Filho, Carlos. "Napoleão em Santa Helena". In:_____. Livro Geral. Olinda: Secretaria de Patrimônio e Cultura, s.d.

26.3.16

Sosígenes Costa: "Crepúsculo"




Crepúsculo

Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões. Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.

As aves cor de gesso, à claridade
do acaso, ficam quase solferinas.
A cor dourada agora tudo invade,
tornando as passifloras ambarinas.

A natureza cintilante e amena
sardanapalescamente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.

Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente mas a aurora.



COSTA, Sosígenes. "Crepúsculo". In:_____. Obra poética. São Paulo: Cultrix, 1978.

24.3.16

António Botto: "Foi tarde de julho"




Foi tarde de julho


Foi numa tarde de julho.
Conversávamos a medo,
– Receios de trair
Um tristíssimo segredo.

Sim, duvidávamos ambos:
Ele não sabia bem
Que o amava loucamente
Como nunca amei ninguém.
E eu não acreditava
Que era por mim que o seu olhar
De lágrimas se toldava...

Mas, a dúvida perdeu-se;
Falou alto o coração!
- E as nossas taças
Foram erguidas
Com infinita perturbação!

Os nossos braços
Formaram laços.

E, aos beijos, ébrios, tombamos;
– Cheios de amor e de vinho!

(Uma suplica soava:)

“Agora... morre comigo,
Meu amor, meu amor... devagarinho!...”



BOTTO, António. "Foi tarde de julho". In: VIEGAS, Francisco José (org.). Cem poemas para salvar a nossa vida. Lisboa: Quetzal, 2014.

22.3.16

Georg Trakl: "Rondel": trad. por João Barrento




Rondel


Esgotou-se a fonte de oiro dos dias,
Os tons da tarde, azuis e outonais:
Morreram doces flautas pastorais
Os tons azuis da tarde, e outonais
Esgotou-se a fonte de oiro dos dias.




Rondel


Verflossen ist das Gold der Tage,
Des Abends braun und blaue Farben:
Des Hirten sanfte Flöten starben
Des Abends blau und braune Farben
Verflossen ist das Gold der Tage.




TRAKL, Georg. "Rondel". In: BARRENTO, João. A alma e o caos. 100 poemas expressionistas. Seleção e trad. de João Barrento. Lisboa: Relógio d'Água, 2001.

20.3.16

Gastão Cruz: "Rainha da noite"




Rainha da noite


De que serve sonhar que não acabe
alguma tarde como o dia a vida

A madrugada rasga o céu do palco
nas árias da rainha suicida

Mas a noite da morte é que não abre
as veias dando o sangue a outro dia




CRUZ, Gastão. "Rainha da noite". In:_____. "O pianista". In:_____. Os poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

17.3.16

Alberto Pucheu: "À míngua"




À míngua

Caminho há quinze horas pela cidade do Rio de Janeiro e
não sinto vontade de parar, apesar da fome
solapando as pernas e o pensamento.
Sou despejado de mim feito inquilino com contrato
expirado, sem dinheiro para renová-lo. Meu desespero é
pelo agora.
Não, não voltarei para o trabalho. Não serei como os
outros. Não serei como sou, eu que sou como qualquer
um e como todos os outros. Continuarei a caminhar
por quantas horas forem necessárias
até expirar o derradeiro resquício de incômodo, até secar
a última gota do medo,
até que o grito não venha do desajuste, mas
do inumano explícito em cada paisagem.
Vou por onde não preciso de portas.
Quinze horas caminharei, e depois mais quinze,
e, ainda, depois... Esquecido de mim
e de todos os outros.



PUCHEU, Alberto. "À míngua". In:_____. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.

14.3.16

Luís Miguel Nava: "A pouco e pouco"




A pouco e pouco



     Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.
     Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.
     Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.



NAVA, Luís Miguel. "A pouco e pouco". In:_____. "Como alguém disse". In:_____. Poesia completa 1979-1994. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

12.3.16

Domício Proença Filho: "O poema"




O poema

Entre o verbo
e o silêncio
a incisão
profunda.
Sem anestesia.



PROENÇA FILHO, Domício. "O poema". In Revista Revestrés, nº 23, Dezembro/2015-Janeiro/2016, ano 4, Teresina.

10.3.16

Waly Salomão: "Em face dos últimos acontecimentos"




EM FACE DOS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS


Na minha mente é que as rosas desabrocham
E esplendem
E aí quedam
                    -- ai de mim! --
Num instante de tempo muito mais acelerado
Do que a esbaforida eternidade de um dia
Das rosas do poeta Malherbe.



SALOMÃO, Waly. "Em face dos últimos acontecimentos". In: "Tarifa de embarque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.




7.3.16

Mário Faustino: "Vigília"




Vigília

Triunfo de herói morto – claro, dórico
Em seus verões eretos, passageiros
Sustentos de frontões de eternidade
Invernosos, sombrios.

Que mãos, postas em meio a tua ausência
Clamorosa, puderam resolver
O enigma dos eclipses desse sol
Alegórico, altivo?

Mas não temos resposta. E a esfinge desdenha
Devorar-nos na paz que a transfigura
Após a fértil guerra pela inútil
Coroa longeviva.

Entretanto jazemos entre as tochas
Com ele. E nos repele. E nos confunde.
E só resta partir, por desertos agônicos
Semeando-lhe as cinzas,

Até que destas velas nasçam ramas
E pássaros apaguem luto e chamas.



FAUSTINO, Mário. "Vigília". In:_____. "O homem e sua hora". In:_____. Poesia de Mário Faustino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

4.3.16

Jacques Prévert: "Le tendre et dangereux visage de l'amour" / "O terno e perigoso rosto do amor": trad. de Silviano Santiago




O terno e perigoso rosto do amor

O terno e perigoso
rosto do amor
me apareceu numa noite
depois de um dia muito comprido
Talvez fosse um arqueiro
com seu arco
ou ainda um músico
com sua harpa
Não me lembro mais
Nada mais sei
Tudo o que sei
é que ele me feriu
talvez com uma flecha
talvez com uma canção
Tudo o que sei
é que me feriu
feriu aqui no coração
e para sempre
Ardente muito ardente
ferida do amor.




Le tendre et dangereux visage de l’amour

Le tendre et dangereux 
visage de l'amour 
m'est apparu un soir 
après un trop long jour 
C'était peut-être un archer 
avec son arc 
ou bien un musicien 
avec sa harpe 
Je ne sais plus 
Je ne sais rien 
Tout ce que je sais 
c'est qu'il m'a blessée 
peut-être avec une flèche 
peut-être avec une chanson 
Tout ce que je sais 
c'est qu'il m'a blessée 
blessée au coeur 
et pour toujours 
Brûlante trop brûlante 
blessure de l'amour.




PRÉVERT, Jacques. "Le tendre et dangereux visage de l'amour"/"O terno e perigoso rosto do amor". In:_____. Poemas. Seleção, organização e tradução por Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

2.3.16

Armando Freitas Filho: "Bob"




Bob

Primeiro amor fora da família.
Primeira língua que me lambeu
deliciosamente morna de desejo.
Primeiro beijo de língua, primeiro
amigo, guardião das sete chaves
de todos os segredos: dos mais
sujos ou íntimos da alma de carne.
Meu meio-irmão de outra raça
ou meu primeiro filho, inconcebível
morto aos quatorze anos.




FREITAS Filho, Armando. "Bob". In:_____. Lar, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.