30.10.12

Carlos Pena Filho: "Pedro Álvares Cabral"





Pedro Álvares Cabral


O enorme céu que cobre mar e mágoas
e abriga os astros,
sustém meu claro sonho sobre as águas,
velas e mastros.

Um dia hei de encontrar terra ignota:
é assim quem sonha.
E se nenhuma houver em minha rota,
Que Deus a ponha.

Em meio ao longo mar não faço caso
dos dias meus,
Pois tenho a guiar-me o vento ou o puro acaso
e o acaso é Deus.



PENA FILHO, Carlos. Livro geral: poemas. Org. por Tânia Carneiro Leão. Recife: ed. da organizadora, 1999.

28.10.12

Aderbal Freire Filho: programa "Arte do Artista", da TV Brasil, com participação dos poetas Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz





Eis o programa da TV Brasil "Arte do Artista", dirigido e estrelado por Aderbal Freire Filho, de que, a convite dele, participamos eu e Eucanaã Ferraz:


27.10.12

Katia Maciel: "babuíno"






O seguinte poema faz parte do livro Zun, de Katia Maciel, que será lançado na Galeria A Gentil Carióca Lá, na próxima terça-feira, às 19h. Na ocasião, a autora e eu conversaremos sobre poesia com o público.






babuíno


macaco louco
se entrega ao canto

some
aparece de novo

anda
de um lado pro outro

eu cá no meu canto
me escondo

























25.10.12






No dia 30 de outubro, terça-feira, terá lugar o lançamento do livro de poemas ZUN, de Kátia Maciel, na galeria A Gentil Carioca Lá, na Av. Epitácio Pessoa, 1674/401. No mesmo local, antes do lançamento, às 19h, conversarei com a autora sobre o seu livro.


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23.10.12

Alex Varella: "Marítimo"





O seguinte poema faz parte do livro Céu em cima / Mar em baixo, de Alex Varella, que será lançado em Niterói na próxima quinta-feira (vejam postagem abaixo desta):






MARÍTIMO


Passo o tempo em frente ao mar

O coração e os olhos vestidos de calção









.

Lançamento em Niterói do livro "Céu em cima / Mar em baixo", de Alex Varella



O belíssimo livro de Alex Varella, "Céu em cima / Mar em baixo", será lançado em Niterói, na quinta-feira, 25 do corrente, em Icaraí, na Livraria Gutenberg, na rua Cel. Moreira César, 211, Lj. 101. Todos os frequentadores da Acontecimentos estão convidados!




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Horácio: Ode I.5 / Para Pirra: trad. Haroldo de Campos




Para Pirra

Quem, Pirra
agora
se lava em rosas
(pluma e latex)
na rosicama do
teu duplex?
Quem,
onda a onda,
do teu cabelo
desfaz a trança
platino-blonda?
Pobre coitado
inocente inútil
vai lamentar-se
para toda a vida.
Um deus volúvel
mais do que a brisa
muda em mar negro
seu lago azul.
Pensava que eras
dócil-macia
toda ouro mel.
Não és. Varias.
(Ah quem se fia
no fútil brilho
desse ouropel!)
Eu, por meu turno,
todo ex-aluno,
esta oferenda
ao deus Netuno
padripotente
no teu vestíbulo
deixo suspensa
(vide a legenda):
VMIDA AINDA
A TVNICA



CAMPOS, Haroldo de. "Para Pirra". Apud ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar comum. Alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1994.





Ode I.5

Quis multa gracilis te puer in rosa
perfusus liquidis urget odoribus
grato, Pyrrha, sub antro?
cui flavam religas comam
simplex munditiis? heu quotiens fidem
mutatosque deos flebit et aspera
nigris aequora ventis
emirabitur insolens,
qui nunc te fruitur credulus aurea,
qui semper vacuam, semper amabilem
sperat, nescius aurae
fallacis. miseri, quibus
intemptata nites: me tabula sacer
votiva paries indicat uvida
suspendisse potenti
vestimenta maris deo.





21.10.12

Federico Garcia Lorca: "Gacela del amor desesperado" / "Gazel do amor desesperado: trad. William Agel de Melo






Gazela del amor desesperado

La noche no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
aunque un sol de alacranes me coma la sien.

Pero tú vendrás
con la lengua quemada por la lluvia de sal.

El día no quiere venir
para que tú no vengas
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
entregando a los sapos mi mordido clavel.

Pero tú vendrás
por las turbias cloacas de la oscuridad.

Ni la noche ni el día quieren venir
para que por ti muera
y tú mueras por mí.





Gazel do amor desesperado

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Ma eu irei,
inda que um sol de lacraias me coma a fronte.

Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridão.

Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.

19.10.12

Eucanaã Ferraz: "Papel tesoura e cola!



O seguinte poema faz parte do livro Sentimental, que será lançado por Eucanaã Ferraz na próxima terça-feira, 23 do corrente, na Livraria Travessa de Ipanema, a partir das 19h:


Papel tesoura e cola


Dia de verão na Vista Chinesa. Eu, sozinho,
era um mandarim frio; mas vendo tudo

do alto, tomado pela beleza, achei que
em meu coração a tristeza era mesquinha;

pensar em mim e em você me pareceu avareza,
tendo em vista que nós somos bem menores

vistos do Alto da Boa Vista. Janeiro bicicletas
bem-te-vis entraram pelos meus olhos

abrindo em cheio meu peito; que sombra
demoraria à luz de tantas lanternas?

Mesmo a noite mais profunda logo se incendiara
e, decerto, morreríamos só depois da madrugada.

Era uma tarde chinesa, tarde de mim sem você,
quando vi que nós dois juntos não valíamos

a cena.

16.10.12

Lançamento de livro do poeta Eucanaã Ferraz




Terça-feira, 23 de outubro, às 19h, será lançado na Livraria da Travessa de Ipanema o livro de poemas Sentimental, de Eucanaã Ferraz. Todos os frequentadores do Acontecimentos estão convidados.



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15.10.12

Abu Nuwas: "Nos banhos públicos"





O aiatolá Ali Khameni, líder supremo do Irã, declarou no sábado que a homossexualidade é uma anormalidade ocidental. Com isso repetiu a estupidez do presidente do seu país, Mahmoud Ahmadinejad, que havia declarado, em 2007, não haver homossexualidade no Irã. Tratar-se-á de manifestações de crassa ignorância sobre o próprio país deles ou de inescrupulosa má fé? Ambas as coisas, sem dúvida.


O fato é que qualquer pessoa culta sabe, por exemplo, que “desde a aurora da poesia persa no século IX até o século XX, não apenas a homossexualidade foi aprovada na poesia persa, mas a verdade é que o homoerotismo constituiu praticamente o único tema amatório dos “ghazals” (poemas líricos curtos, semelhantes a sonetos) e o assunto principal de grande parte da poesia persa de amor” (“Encyclopaedia Iranica” disp. em http://www.iranicaonline.org/articles/homosexuality-iii).

De todo modo, a declaração do aiatolá me incitou a postar aqui um pequeno poema do grande poeta persa Abu Nuwas, do século IX:


Nos banhos públicos


Nos banhos públicos, os mistérios ocultos pelas calças
São revelados.
Tudo se torna radiantemente claro.
Deleite os olhos!
Belas bundas, tóraxes perfeitos,
E ouvirás rapazes pios a se olhar e exclamar
"Deus é grande!”, “Louvado seja Deus!”
Ah, que palácios de deleites são os banhos públicos!
Ainda que os toalheiros, a entrar de vez em quando,
Um pouco estraguem o prazer.

    NUWAS, Abu. Carousing with gazelles. Trad. Jaafar Abu Tarab. New York: iUniverse, 2005.

14.10.12

Zuenir Ventura: "Crime e castigo"





Creio que o seguinte artigo de Zuenir Ventura, publicado em O Globo no dia 13 do corrente, é o mais equilibrado e correto dos muitos que li sobre o julgamento do "mensalão":


Crime e castigo


Com sua serena lucidez, a ministra Cármen Lúcia fez uma ressalva ao votar pela condenação de José Genoino e José Dirceu: "Não estou julgando a história de pessoas que em diversas ocasiões tiveram a vida reta. Estou julgando os fatos apresentados nestes autos." O mesmo poderia ser dito em relação ao PT, cuja trajetória até estourar o escândalo do mensalão foi também reta. Não são os princípios programáticos do Partido dos Trabalhares que estão sendo condenados pelo STF, "não é a história, mas os fatos", como também afirmou o decano Celso de Mello. O que se condena é um acidente grave de percurso, um mau passo, um enorme desvio de conduta. Em reunião com seu Ministério no dia 12 de agosto de 2005, Lula, chocado com as revelações sobre dirigentes do partido, desabafou: "Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis sobre as quais eu não tinha qualquer conhecimento. Não tenho nenhuma vergonha de dizer que nós temos de pedir desculpas. O PT tem de pedir desculpas. O governo, onde errou, precisa pedir desculpas."

Por que não pedir agora? Por que o Lula de 2012 reage ao julgamento mandando seus companheiros receberem o castigo de "cabeça erguida", como se houvesse algum motivo para soberba? Seria tão mais honesto, tão mais coerente com as origens éticas do partido se, em vez de desqualificar o trabalho do Supremo com suspeitas infundadas e se, em lugar de responsabilizar a mídia, os réus mensaleiros aceitassem o revés com humildade e fizessem uma corajosa autocrítica como pedia Lula sete anos atrás.

Como dirigentes partidários ousam suspeitar da isenção de uma Corte cujos membros em sua maioria foram indicados por Lula e Dilma e que, portanto, não têm qualquer razão para lhes ser deliberadamente hostis? Que interesses levariam esses juízes a sacrificar suas reputações para "condenar sem provas"? Como colocar em dúvida a correção de um personagem como Joaquim Barbosa, que pode ter um temperamento difícil, mas cuja opção política é conhecida (há dias, ele confessou em entrevista ter votado três vezes em Lula, sem arrependimento, porque "as mudanças e avanços no Brasil nos últimos dez anos são inegáveis").

Os petistas acreditam ter motivos de queixa pelo rigor inédito do STF, que, espera-se, não seja de exceção, aplicado apenas nesse caso. Mas, ao se recusar a assumir a culpa que lhe cabe, o PT perdeu a oportunidade histórica de ser diferente também no erro, como foi um dia nos acertos.

Zuenir Ventura

13.10.12

Friedrich Nietzsche: "Morte"




89. Morte

Com a perspectiva segura da morte, uma deliciosa, odorosa gota de leviandade poderia ser mesclada a cada vida -- mas vocês, estranhas almas de farmacêutico, dela fizeram uma gota de veneno de mau sabor, com que toda a vida se torna repugnante!




NIETZSCHE, Friedrich. In:_____. 100 aforismos sobre o amor e a morte. Seleção e organização de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2012.

11.10.12

Constantinos Caváfis: O espelho da entrada / trad. José Paulo Paes





O espelho da entrada


À entrada da mansão
havia um grande espelho muito antigo,
comprado pelo menos há mais de oitenta anos.

Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate
(e nos domingos atleta diletante)
estava ali com um pacote.

Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro
com o recibo. O empregado do alfaiate
ficou sozinho, à espera.

Acercou-se do espelho e mirou-se
para ajeitar a gravata. Após cinco minutos,
trouxeram-lhe o recibo e ele se foi.

Mas o antigo espelho, que vira e revira
nos seus longos anos de existência
coisas e rostos aos milhares;
mas o antigo espelho agora se alegrava
e exultava de haver mostrado sobre si
por um instante a beleza culminante.



CAVÁFIS, Constantinos. In: PAES, José Paulo (org. e trad.). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986

8.10.12

Francisco Alvim: "Sofrimento"




Sofrimento

Cara de tristeza na festa
Anda, vê um copo d'água pra teu pai





ALVIM, Francisco. "Elefante". In:_____. Poemas [1968-2000]. São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.


6.10.12

Roberto Corrêa dos Santos: "O Porventura, de Antonio Cicero"



Com grande felicidade recebi, do grande artista e teórico da literatura e da arte Roberto Corrêa dos Santos, o seguinte belíssimo texto sobre o meu livro Porventura:





O Porventura, de Antonio Cicero


por Roberto Corrêa dos Santos



I



Alumbram-me, diga-se logo, nos poemas plasmados no Porventura, de Antonio Cicero, as sabedorias de vida e de arte verbal ali inscritas – sabedorias sempre a um tempo joviais e maduras; alumbram-se igualmente o ter-se feito no livro um trajeto que permite a todos o poder seguir sem asperezas de transcurso a variedade de pensamentos plásticos, modulares e rítmicos sobre coisas e existência várias e o quente espalhar-se nos versos um si assubjetivo e, portanto, público, exposto com as virtudes de um medido dizer, uma enunciação que não se transborda senão até o exato afeto a propagar-se do leitor no espírito: ora a voz ergue-se vivaz e aos saltos e alegre, ora a voz traz o desenho não do sussurro mas do construir-se um cantar em escrita e em tom, afirme-se, deliciosamente afagante: difícil não ser pelas linhas conduzido, em leveza não presente em poeta algum dos do Brasil e assim entregar-se ao bom traço das direções que Cicero faz ocorrer qual um acontecimento, um sopro, uma epifania sem distúrbio. Nas modéstia e brancura clássicas do Porventura, desde logo envolvido sou por frases que se encontram em apagamentos que avocam o, destaque-se, advérbio... ‘de dúvida’, de inexistente dúvida; alteia-se um porventura de forma nominal, a um passo do nome, do pronome, da massa de um quase-substantivo; não só de polidezas o termo do título se constrói. Em inventável ‘porventura, terias uma xícara?’ marcar-se-ia o talvez, não como dúvida ou hesitação, e sim como hipótese; não o sinal de um indagar retórico mas o grafismo de um movimento, de um balanço, um pêndulo elegante e risonho no mundo das frases, das tantas frases de hoje, escritas e desgraciadas; no porventura, esse, bem o talvez: um talvez a provavelmente deslocar-se para inserir-se entre o definido e o indefinido, constituindo outras macias sinuosidades na ordem normalmente dura das perguntas, e, ainda também, com o termo, o porventura, produz-se certa evidência – sendo título, e só (seus suplementos lá, no corpo dos versos) – de suavíssimo enigma; enigma posto na capa (junto ao sempre belo compor de Luciano Figueiredo), oferecendo no conjunto geral da obra uma tal interessante contemporaneidade a situar-se em parceria com os muitos feitos de arte visual constituídos ‘simplesmente’ pelas recolhas e pelo registros de matérias brandas que visam à partilha de mimos, de delicados mimos, como os de Brígida Baltar ou os de Daniela Seixas – aquela pesca orvalhos, brisas, noites, coloca-os em frascos; esta cola pestanas que tombam de seus olhos diante de folhas de papel de trabalho, e nascem sob adesivos discretos parênteses, parênteses vindos do corpo. Vem do corpo e do ar o Porventura, de Cicero: o livro guarda-os, protege-os, afaga-os; inteiro vi seu irmão Roberto, Corrêa como eu. E nele sorriu meu irmão Luizinho, Lulu Corrêa.


II


Poder-se-ia o porventura instalar-se em ‘faria eu isto de morrer agora se porventura não tivesses chegado a tempo’; na frase, como no retângulo editado, certa bênção pagã, recordos de aventurança, potências de um não-acontecer justo por destino: assim, instalam-se na espacial geometria de Cicero (a) o campo aberto, (b) a vida sagrada e sem dogma, (c) a possibilidade ardente, (d) o riso e a fenda, sem melancolias fracas. E a epígrafe, entretanto, põe-se a rasurar um dos porventura, aquele relativo à poesia: ‘a poesia’ – certifica, com quem escreve, Cocteau –, ‘a poesia, indispensável’. Dessa convicta firmeza, desse nenhum porventura entre os muitos outros porventura, vão-se fazendo esboços de uma aristocrática Poética e seus itens gerais. Descrevo-os: (1 poema 1) em estado de poesia, o não ser possível o amadurecimento: pode alguém tornar-se velho, somente velho; velho e, jovialmente, não maduro – deuses, sim, esses poderão madurar os amados, próximos e a virem; (2 poema 2) em estado de poesia, o impossível de evitar-se a morte, podendo-se, porém, afastar sombra e derrota; (3 poema 3) em estado de poesia, o perderem-se os rumos do olho e do ego, elaborando-se e firmando-se, e isso apenas possivelmente, o vigor do a tornar-se; (4 poema 4) em estado de poesia, o humor e o contraste lado a lado e no mesmo largo continente; (5 poema 5) em estado de poesia, o interditar-se das histórias pingentes e esmolas; (6 poema 6) em estado de poesia, a entrega à arte de fisgar o que para sempre escapa; (7 poema 7) em estado de poesia, o exame cuidadoso da coisa olhada, tendo em conta, dia a dia, o inadiável retorno; (8 poema 8) em estado de poesia, o estar sempre aquém no gesto de caminhar e caminhar em direção aos jamais suficientes louvores a mestres genealógicos; (9 poema 9) em estado de poesia, o saltar em voo, tendo o terreno; (10 poema 10) em estado de poesia, o ir à matéria do amor, a que suspende o repirar e o ver; (11 poema 11) em estado de poesia, os esquecimentos quanto a feitos quando feitos; (12 poema 12) em estado de poesia, o destacar da morte a cor; (13 poema 13) em estado de poesia, a deriva e o esmo em mapas idos, até refazer da origem um dêitico do aqui, e do já; (14 poema 14) em estado de poesia, o deflagrar de frases sobre o ativo e grande vazio; (15 poema 15) em estado de poesia, o bem o grande bem do desviar-se; (16 poema 16) em estado de poesia, o de novo esquecer-se do exato término-a-vir, dobrando-se por sobre a agoralidade, um termo seu, Cicero; (17 poema 17) em estado de poesia, o dar a ver, no menor, o miolo, o isto de entes segredando; (18 poema 18) em estado de poesia, o restar em páginas o vagado sobre solos e grãos; (19 poema 19) em estado de poesia, o precaver-se e o prosseguir; (20 poema 20) em estado de poesia, o concentrar, por vezes, todos os plurais; (21 poema 21) em estado de poesia, o abrir com as mãos o que seja natural, desentranhando-lhe duas não contornáveis cores provenientes de tintas básicas; (22 poema 22) em estado de poesia, o auscultar na seta à frente o sentido do vital antes; (23 poema 23) em estado de poesia, o aconchegar-se no macio bom das coisas, dando-se de algum modo ao pronto para o interromper; (24 poema 24) em estado de poesia, o traçar em pathos de distância o implacável mas retido grito; (25 poema 25) em estado de poesia, o reconhecer o terreno, defendendo-o se necessário; (26 poema 26) em estado de poesia, o saber – dele valendo-se – da potência das tinturas; (27 poema 27) em estado de poesia, o aceitar a hipótese de ser traído pelo que fez; (28 poema 28) em estado de poesia, o clarear, por curvos jeitos, modos alguns de as ilusões funcionarem; (29 poema 29) em estado de poesia, o aclamar as aberturas que se incorporam em virtude do muito mais do que houver no haver; (30 poema 30) em estado de poesia, o sublinhar o risco a inserir-se entre o incômodo, o outro, o pensamento; (31 poema 31) em estado de poesia, o indicar com beleza tonteante a quase infixável passagem do epifânico; (32 poema 32) em estado de poesia, o despedir-se; (33 poema 33) em estado de poesia, o despedir-se; (34 poema 34) em estado de poesia, o recolher-se no ao redor; (35 poema 35) em estado de poesia, o remeter a, o remeter a – dormir. Dormir, após as curvas verbais, as teclas das rimas em costuras internas como se pontos gráficos e notas musicais, as pianísticas, e a flauta soando, interrompendo-se, e as muitas ligas conjuntivas eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee: as personagens surgindo e logo familiares, próximas: uma atual arte de mover e mover e mover um novo Sonho de uma noite de verão, por meio de um raro e outro como se, um como se poético-ficcional – feliz –, a girar o Porventura amplo, seu teatro lírico de radical delicadeza forte; assim o mirei seu operar, Cicero, mirei-o com todo o corpo – extasiado, sim: extasiado.



3.10.12

Ferreira Gullar: Entrevista à revista Veja




A seguinte -- brilhante -- entrevista do poeta Ferreira Gullar a Pedro Dias Leite, da revista Veja, foi publicada em 26 de setembro do corrente.



UMA VISÃO CRÍTICA DAS COISAS
Pedro Dias Leite

O poeta diz que o socialismo não faz mais sentido, recusa o rótulo de direitista e ataca: “Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é”

Um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, Ferreira Gullar, 82 anos, foi militante do Partido Comunista Brasileiro e, exilado pela ditadura militar, viveu na União Soviética, no Chile e na Argentina.

Desiludiu-se do socialismo em todas as suas formas e hoje acha o capitalismo “invencível”.

É autor de versos clássicos — “À vida falta uma parte / — seria o lado de fora — / para que se visse passar / ao mesmo tempo que passa / e no final fosse apenas / um tempo de que se acorda / não um sono sem resposta. / À vida falta uma porta”.

Gullar teve dois filhos afligidos pela esquizofrenia. Um deles morreu. O poeta narra o drama familiar e faz a defesa da internação em hospitais psiquiátricos dos doentes em fase aguda. Sobre seu ofício, diz: “Tem de haver espanto, não se faz poesia a frio”.

O senhor já disse que “se bacharelou em subversão” em Moscou e escreveu um poema em que a moça era “quase tão bonita quanto a revolução cubana”. Como se deu sua desilusão com a utopia comunista?

GULLAR: Não houve nenhum fato determinado. Nenhuma decepção específica. Foi uma questão de reflexão, de experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo, mas no contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo fracassou. Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica.

A derrocada do socialismo não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso do sistema foi interno. Voltei a Moscou há alguns anos. O túmulo do Lenin está ali na Praça Vermelha, mas pelo resto da cidade só se veem anúncios da Coca-Cola. Não tenho dúvida nenhuma de que o socialismo acabou, só alguns malucos insistem no contrário. Se o socialismo entrou em colapso quando ainda tinha a União Soviética como segunda força econômica e militar do mundo, não vai ser agora que esse sistema vai vencer.

Por que o capitalismo venceu?

GULLAR: O capitalismo do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de justiça se revoltaram contra aquilo. O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade.

A luta dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos, tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produza riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora. É bobagem. Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro. O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas.

A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária. A partir dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. Mas é um equívoco concluir que a derrocada do socialismo seja a prova de que o capitalismo é inteiramente bom. O capitalismo é a expressão do egoísmo, da voracidade humana, da ganância. O ser humano é isso, com raras exceções.

O capitalismo é forte porque é instintivo. O socialismo foi um sonho maravilhoso, uma realidade inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. O capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser humano. Por isso ele é invencível.

A força que torna o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhões de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro. É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo um país não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. Não tem cabimento.

O senhor se considera um direitista?

GULLAR: Eu, de direita? Era só o que faltava. A questão é muito clara. Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é. Pensar isso a meu respeito não é honesto. Porque o que estou dizendo é que o socialismo acabou, estabeleceu ditaduras, não criou democracia em lugar algum e matou gente em quantidade. Isso tudo é verdade. Não estou inventando.

E Cuba?

GULLAR: Não posso defender um regime sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar um país do qual eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um regime em que não se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo. Apesar disso, há uma porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas, obviamente, não querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas reconhecer que estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que nunca deu certo.

Como o senhor define sua visão política?

GULLAR: Não acho que o capitalismo seja justo.

O capitalismo é uma fatalidade, não tem saída. Ele produz desigualdade e exploração. A natureza é injusta. A justiça é uma invenção humana. Um nasce inteligente e o outro burro. Um nasce inteligente, o outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça somos nós. A capacidade criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade se desenvolver, para a solução da desigualdade, porque é só a produção da riqueza que resolve isso. A função do estado é impedir que o capitalismo leve a exploração ao nível que ele quer levar.

Qual a sua visão do governo Dilma Rousseff?

Dilma é uma mulher honesta, não rouba, não tem a característica da demagogia. Mas ela foi posta no poder pelo Lula. Assim, não tem autoridade moral para dizer não a ele. Nesse aspecto, é prisioneira dele.

Como o senhor avalia a perspectiva de condenação dos réus do mensalão?

GULLAR: O julgamento não vai alterar o curso da história brasileira de uma hora para a outra. Mas o que o Supremo está fazendo é muito importante. É uma coisa altamente positiva para a sociedade. Punir corruptos, pessoas que se aproveitaram de posições dentro do governo, é uma chama de esperança.

O senhor se identifica com algum partido político atual?

GULLAR: Eu fui do Partido Comunista, mas era moderado. Nunca defendi a luta armada. A luta armada só ajudou mesmo a justificar a ação da linha dura militar, que queria aniquilar seus oponentes. Quando fui preso, em 1968, fui classificado como prisioneiro de guerra. O argumento dos militares era, e é, irrespondível: quem pega em armas quer matar, então deve estar preparado para morrer.

O senhor condena quem pegou em armas para lutar contra o regime militar?

GULLAR: Quem aderiu à luta armada foram pessoas generosas, íntegras, tanto que algumas sacrificaram sua vida. Mas por um equívoco. Você tem de ter uma visão critica das coisas, não pode ficar eternamente se deixando levar por revolta, por ressentimentos. A melhor coisa para o inimigo é o outro perder a cabeça. Lutar contra quem está lúcido é mais difícil do que lutar contra um desvairado.

Como se justifica sua defesa da internação no tratamento da esquizofrenia?

GULLAR: As pessoas usam a palavra manicômio para desmoralizar os hospitais psiquiátricos. Internei meu filho em hospitais que têm piscina, salão de jogos, biblioteca. Mesmo os públicos não têm mais a camisa de força ou sala com grades. Tive dois filhos esquizofrênicos. Um morreu, o outro está vivo, mas não tem mais o problema no mesmo grau. Controlou com remédio, e a idade também ajuda. A esquizofrenia surge na adolescência e se junta à impetuosidade. Com o tempo, a pessoa vai amadurecendo. Doença é doença, não é a gente. Se estou gripado, a gripe não sou eu. A esquizofrenia é uma doença, mas eu não sou a esquizofrenia. Posso evoluir, me tornar uma pessoa mais madura, debaixo de toda aquela confusão. O esquizofrênico com 50 anos não é o mesmo de quando tinha 17.

Qual o pior momento na sua convivência com filhos esquizofrênicos?

GULLAR: Quando a pessoa entra em surto, ela pode se jogar pela janela. Meu filho, o Paulo, se jogou. Hoje ele anda mancando porque sofreu uma lesão na coluna. Ele conversava comigo, via televisão, brincava, lia meus poemas. Em surto, não tinha controle. Queria estrangular a empregada. Nessas horas, a única maneira é internar e medicar. Nesse estado, sem nenhum socorro, o esquizofrênico pode fazer qualquer coisa.

A família pobre faz o quê, se não tem mais onde internar?

Se mantiver a pessoa em casa, ela poderá tocar fogo em tudo, pegar uma faca e tentar assassinar o pai. Poderá fugir para a rua, desvairada. Essa política contra os hospitais psiquiátricos tem como resultado prático uma tragédia em que os ricos internam seus filhos em clínicas particulares e os pobres morrem na rua.

Quando ouço alguém dizer que as famílias internam os filhos porque querem se ver livres deles, só posso pensar que essa pessoa gosta dos meus filhos mais do que eu. Nunca viu meu filho, mas ama meu filho mais do que eu. Absurdo. Você não sabe o que é uma família ter um filho esquizofrênico. Além do problema do tratamento, existe o desespero de não saber o que fazer.

Os hospitais psiquiátricos continuam a existir porque os médicos sabem que não há outra saída. Não se interna um doente para que ele fique vinte anos lá dentro, mas sim três dias, três meses. Meus filhos nunca ficaram internados além do tempo necessário. Eles voltavam para casa normais. Era uma alegria. Nenhuma família quer ter seu filho preso.

Como foi a primeira vez que se defrontou com a doença?

GULLAR: O primeiro surto do Paulo foi no exílio, em Buenos Aires. Um dia, no apartamento, a gente estava brincando, a bola desceu pela escada, ele saiu para pegá-la e não voltou. Desci, ele tinha sumido. Em que direção eu ando? Voltei para casa e fiquei chorando, não sabia o que fazer. Paulo ficou meses sumido. Isso foi em 1974, logo que cheguei a Buenos Aires. Terminei encontrando-o preso. No desvario, ele tentou roubar um carro — não sabia nem dirigir — e foi preso. Fez greve de fome. Estava esquelético.

O policial disse que era preciso uma ordem para soltá-lo, porque era menor. Mas deixou que eu levasse meu filho, porque sabia que ele estava doente. Levei o Paulo para casa. Ele entrou e começou a arrebentar a janela. Morávamos no quinto andar. Ele foi internado. Até o dia em que, esperto como é, sumiu do hospital, para sempre. Foi encontrado em São Paulo. Saiu de Buenos Aires sem um tostão, com a roupa do corpo. Esses episódios não têm fim.

Como é seu método para fazer poesia?

GULLAR: Já fiquei doze anos sem publicar um livro. Meu último saiu há onze anos. Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia. Só escrevo assim. Estou na praia, lembro do meu filho que morreu. Ele via aquele mar, aquela paisagem. Hoje estou vendo por ele. Aí começo um poema… Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos. Não dá para escrever um poema sobre qualquer coisa.

O mundo aparentemente está explicado, mas não está. Viver em um mundo sem explicação alguma ia deixar todo mundo louco. Mas nenhuma explicação explica tudo, nem poderia. Então de vez em quando o não explicado se revela, e é isso que faz nascer a poesia. Só aquilo que não se sabe pode ser poesia.

A idade é uma aliada ou uma inimiga do poeta?

GULLAR: Com o avanço da idade, diminuem a vontade e a inspiração. A gente passa a se espantar menos. Tem poeta que não se espanta mais, mas insiste em continuar escrevendo, não quer se dar por vencido. Então ele começa a escrever bobagens ou coisas sem a mesma qualidade das que produzia antes. Saber fazer ele sabe, mas é só técnica, falta alguma coisa. Não se faz poesia a frio. Isso não vai acontecer comigo. Sem o espanto, eu não faço.

Escrever só para fazer de conta, não faço. Eu vou morrer. O poeta que tem dentro de mim também. Tudo acaba um dia. Quando o poeta dentro de mim morrer, não escrevo mais. Não vou forçar a barra. Isso não vai acontecer. Toda vez que publico um livro, a sensação que tenho é de que aquele é o definitivo. Escrever um poema para mim é uma grande felicidade. Se não acontecer, não aconteceu.



1.10.12

Ruy Espinheira Filho: "Depois"




Depois


Depois, saiu andando pela tarde.
Alguém cantava, longe, acalentando
os escombros do ocaso. E até onde
ele chegara se chamava vida.
Assim pensou, enquanto ouvia a doce
canção da Ausente, de onde renasciam
borboletas, regatos, girassóis
e cães ladrando em quintais antigos.
Olhou (andando, andando) o céu cinzento.
O que restava? Aquilo. As tantas horas
mortas, mortas palavras, morto chão
do amor, dispersos hálitos de alma,
e morta a infância, e tudo morto, morto
- mas persistindo, ali, com uma pátina
inelutável, e se chamava vida.
E ele parou, sentindo-se. E, repleto,
depois saiu andando pela tarde.



ESPINHEIRA FILHO, Ruy. "Memória da chuva". In:_____. Antologia poética. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996.