27.8.10

António Machado: poema XXX de "Proverbios y cantares"

XXX

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

XXX

Caminhante, são teus passos
o caminho e nada mais;
Caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar se faz caminho,
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se voltará a pisar.
Caminhante, não há caminho,
mas sulcos de escuma ao mar.




MACHADO, António. "Proverbios y cantares". Poesías completas. Madrid: Espasa-Calpe, 1983.

25.8.10

Dante Milano: "O beco"




O beco


No beco escuro e noturno
Vem um gato rente ao muro.
Os passos são de gatuno.
Os olhos são de assassino.

Esgueirando-se, soturno,
Ele me fita no escuro.
Seus passos são de gatuno.
Seus olhos são de assassino.

Afasta-se, taciturno.
Espanta-o o meu vulto obscuro.
Meus passos são de gatuno.
Meus olhos são de assassino.



MILANO, Dante. Poesias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1971.

22.8.10

Originalidade e plágio




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 21 de agosto.


Originalidade e plágio


RECENTEMENTE, Helene Hegemann, uma jovem alemã de apenas 17 anos, fez grande sucesso de crítica com seu primeiro romance, intitulado "Axolotl Roadkill". O problema é que logo se descobriu que longos trechos desse romance haviam sido copiados da obra de um autor menos conhecido. Pois bem, longe de pedir desculpas pelo plágio, a moça afirmou que "não existe originalidade; o que existe é autenticidade". Ao que um crítico comentou, com razão: "De fato, trata-se de um autêntico roubo".

É evidente que o fato de não haver originalidade absoluta não significa que não haja originalidade relativa ou que esta não possa em princípio ser conferida. Do contrário, o que justificaria chamar a própria Helene Hegemann de autora de "Axolotl Raodkill"?

Contudo, a falsa tese de que simplesmente não existe originalidade tornou-se trivial nesses tempos de internet e de "cópia e cola", e é frequentemente invocada, nos Estados Unidos (será diferente no Brasil?) por alunos universitários acusados de plágio. Segundo a antropóloga Susan D. Blum, professora da Universidade de Notre Dame, em Indiana, "nossa noção de autoria e originalidade nasceu, floresceu, e pode estar murchando".

Ora, essas ideias da professora Blum parecem-me remontar ao (eu quase disse: "parecem-me originar-se no") ensaio "A Morte do Autor", escrito por Roland Barthes no ano de 1968. "A escritura", lê-se ali, "é a destruição de toda voz, de toda origem". Tudo o que o escritor pode fazer é "imitar um gesto que é sempre anterior, jamais original. Seu único poder é o de misturar escrituras, opor umas às outras, de modo a jamais repousar em nenhuma". Suponho que isso seja o que o próprio Barthes fez em seus livros. Seria então aceitável que outro escritor pretendesse ser o autor desses livros?

O sentido mais legítimo da retórica da "morte do autor" é o de programaticamente afirmar a autonomia do objeto dos estudos literários -a autonomia do texto- contra a sua redução à psicologia, à história, à filosofia etc. Hegemann se sente capaz de empregar a mesma retórica para justificar o plágio porque, independentemente das intenções de Barthes, ela, como tantos outros, apropriou-se de tal figura para os seus próprios fins. Afinal, ele mesmo declarava que "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor".

De todo modo, ao contrário do que Barthes pretende, não é verdade que o autor seja "uma figura moderna, um produto de nossa sociedade na medida em que, ao emergir da Idade Média com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz de modo mais elevado, da "pessoa humana'".

A figura do autor é indissociável do próprio emprego da escritura e já se encontra inteiramente definida na Antiguidade clássica. Só as culturas orais primárias não a conheciam. Assim, é possível, por exemplo, que "Homero" fosse, na cultura oral primária, um nome genérico para determinado tipo de bardo, porém seria absurdo dizer algo semelhante de poetas líricos como Píndaro, Safo, Teógnis etc.

Normalmente, copiar uma obra ou um trecho de uma obra ipsis litteris, sem nada lhe modificar ou adicionar, e pretender ser o seu autor é inadmissível em qualquer sociedade letrada, pois não passa de impostura.

Contudo, usar, no interior de uma obra, um texto que, tendo sido escrito por outro autor, seja universalmente conhecido, não constitui plágio, mesmo que a fonte não seja citada. Assim podiam na Antiguidade clássica ser usados, por exemplo, os poemas atribuídos a Homero. Assim também podem ser usados os versos, por exemplo, "No meio do caminho da nossa vida" e "E agora, José", no Brasil contemporâneo. Se acusado de plágio, um poeta que use versos tão famosos pode dar ao acusador a mesma resposta que Brahms deu aos críticos que observaram uma grande semelhança entre um trecho de sua primeira sinfonia e um trecho da última sinfonia de Beethoven: "Qualquer imbecil percebe isso".

Além disso, é possível saber com certeza relativamente grande a autoria de um texto, mas não a de uma ideia, de modo que, de modo geral, se alguém usar uma ideia sem mencionar a pessoa através da qual tomou conhecimento dela, isso não chega a configurar plágio.

Já copiar uma obra pouco conhecida, como Helene Hegemann fez, é inaceitável, pois lesa o seu autor. Contudo, o crítico francês Roger Caillois admite uma exceção que, na minha opinião, deve ser levada em conta. Para ele, sempre se justifica a apropriação de uma obra medíocre, caso o resultado seja uma obra-prima: mas, como diz Gertrude Stein, as obras primas são tão poucas...

18.8.10

Adília Lopes: "Arte poética"




Arte poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer



LOPES, Adília. Um jogo bastante perigoso. Lisboa: Edição da autora, 1985.

15.8.10

Carlos Pena Filho: "Para fazer um soneto"

Para Fazer um Soneto


Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo, Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse;
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.



PENA FILHO, Carlos. Melhores poemas. Recife: Global Editora, 2000.

12.8.10

Horácio: Ode I.xxxviii / trad. de Pedro Braga Falcão




Dos Persas, rapaz, odeio os requintes,
desagradam-me as coroas entrelaçadas
com a fibra da tília. Desiste de procurar
[os lugares
onde tardia a rosa se demora.

De nada me interessa que tu, zeloso,
[te esforces
por algo ao simples mirto acrescentar. Não te
[fica mal o mirto,
nem a ti, meu servo, nem a mim, que agora
à sombra da videira bebo.



Persicos odi, puer, adparatus,
displicent nexae philyra coronae,
mitte sectari, rosa quo locorum
sera moretur.

simplici myrto nihil adlabores
sedulus curo: neque te ministrum
dedecet myrtus neque me sub arta
vite bibentem.


HORÁCIO. Odes. Tradução de Pedro Braga Falcão. Lisboa: Cotovia, 2008.

8.8.10

A máquina do mundo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada, da Folha de São Paulo, no sábado, 7 de agosto:

COMO SE sabe, um dos maiores poemas de Carlos Drummond de Andrade é "A Máquina do Mundo". A ideia de que o mundo era uma máquina esteve em voga desde a Antiguidade até a Renascença. No poema de Drummond, a máquina do mundo abre-se para o poeta em determinado momento, oferecendo-lhe uma "total explicação da vida". Quando isso ocorre, ele, que por longo tempo havia buscado exatamente essa explicação, enigmaticamente a desdenha. Por quê? Penso que o poeta não só não acredita mais na possibilidade de tal explicação como não mais a deseja.

Se, na Idade Média, a máquina do mundo ainda parecia capaz de se abrir, é porque era tida como finita e fechada. Camões, na Renascença, ainda a descreve como um rotundo globo cercado por Deus. Ela era fechada por possuir um princípio oculto à percepção imediata.

Esse princípio pertencia a uma ordem superior à ordem dos fenômenos que explicava. Era concebível que ele se revelasse se, por exemplo, assim quisesse Deus. Era concebível que se revelassem as causas, a origem e a finalidade do mundo. Era concebível que se retirassem os véus que encobriam seu mecanismo. Era concebível que a máquina se abrisse.

O mundo moderno, por outro lado, não é fechado em nenhum sentido. A rigor, não se pode nem sequer falar de um único mundo moderno. O universo que habitamos é, do ponto de vista epistemológico, isto é, do ponto de vista do conhecimento, infinito. Não é possível que haja um princípio positivo último e inquestionável que constitua a chave do nosso universo, porque o princípio metódico de toda a filosofia e ciência é exatamente a dúvida radical, que, em última análise, mostra que tudo o que é concebível poderia não ser, ou poderia ser de outro modo: que tudo é contingente.

Ao mesmo tempo, nosso universo é também aberto no sentido de não ter portas fechadas nem fechaduras, nem véus. Tudo está à vista e não há nada por trás: ou melhor, aquilo que está por trás o está apenas circunstancialmente, pois pertence à mesma ordem ontológica -à mesma ordem do ser- à qual pertence aquilo que está na frente. Dada sua infinitude epistemológica, sempre haverá alguma coisa por conhecer, mas ela será, a cada passo, uma coisa diferente.

Podemos, em princípio, saber como qualquer coisa funciona, mas não há coisa alguma que permaneça por trás de tudo.

Por isso mesmo, não há chave que abra o nosso universo como um todo nem revelação que o explique. Trata-se de um universo cuja totalidade patente permanece para sempre -não apenas de fato, mas de direito- inexplicável. É a partir dessas constatações que se entende o paradoxo de que, ao ver se entreabrir a máquina do mundo, o poeta tenha desdenhado "colher a coisa oferta/que se abria gratuita" a seu engenho.

A ciência que oferecia tal explicação total era "sublime e formidável, mas hermética". O adjetivo "hermético" se refere, em primeiro lugar, é claro, a Hermes Trismegisto, patrono das ciências herméticas ou ocultas que tanta voga tiveram na Idade Média. A partir desse sentido, "hermético" quer dizer, nos nossos dias, "fechado de maneira a impedir a saída ou entrada de ar".

Tendo aberto o universo, o homem moderno, claustrofóbico, não consegue consentir em regressar a um mundo essencialmente fechado, nem mesmo quando o fechamento se apresenta como a condição de alguma "abertura", a fechadura, a condição de alguma "chave" ou o segredo, a condição de alguma "revelação".

Se o poeta desdenha "colher a coisa oferta/que se abria gratuita" a seu engenho, é que a razão já lhe mostrou que a aceitação de uma "total explicação do mundo" não pode ser senão o mergulho em mais uma ilusão, que inevitavelmente lhe custará mais uma desilusão.

É, pois, com ironia que chama de "gratuita" a "coisa oferta", no momento mesmo em que explica havê-la desdenhado, "incurioso e lasso". Segundo ele, um dom tão dúbio e tardio -não apenas em relação à idade individual do poeta, mas, principalmente, em relação à época moderna do mundo- já não lhe era "apetecível, antes despiciendo".

Sem abrir mão da sua liberdade e ironia, avaliando o que perdeu ao abandonar o mundo fechado, o poeta segue o seu caminho "de mãos pensas" ou, como se lê no poema "Legado", "a vagar taciturno entre o talvez e o se".

3.8.10

Entrevista à Revista E, do SESC de SP

A seguinte entrevista, que dei para a Revista E, do SESC de São Paulo, foi publicada em junho.



1 - Em entrevista à Revista E a professora Walnice Nogueira Galvão afirmou que a poesia tem sorte. Por não ser um objeto de consumo comercial, pouco vendida, os poetas a fazem sem o peso da indústria cultural, que a tudo comercializa e esteriliza. E que por isso a qualidade da poesia é superior à da prosa. O que você pensa a respeito desta visão?


É verdade que não se faz poesia por dinheiro. É mais comum fazê-la por amor. Isso é sem dúvida uma peculiaridade importante da poesia. Contudo, ocorre, em primeiro lugar, que mesmo algo que não seja desprovido de valor comercial pode ser feito apenas por amor; tanto que é impossível dizer que nenhum dos romances que já foram best-sellers tenha valor estético; ou que as telas que Picasso pintou na década de 1950, e que já então valiam fortunas, não tenham valor estético; etc.

Em segundo lugar, ocorre que o fato de que algo não tenha valor comercial não significa que ele não possa ser feito em troca de outras moedas, que não o dinheiro; tais são os aplausos, a fama, o prestígio etc. Há, por exemplo, poetas que escrevem para adular determinado público ou para, correspondendo às exigências de determinados críticos ou modas, ganhar elogios.

Finalmente, em terceiro lugar, não devemos confundir ética com estética. É verdade que, como diz Augusto de Campos, o poeta não deve ir atrás de recompensas. De maneira geral, a heteronomia atrapalha. Mas, para o bem ou para o mal, a verdade escandalosa é que, em matéria de arte, nem as boas intenções, a boa fé, a honestidade, a ética, o amor etc., garantem coisa nenhuma, nem as más intenções estragam tudo.

2 – A reunião da obra, em bons volumes, de poetas antes citados como marginais, caso de Roberto Piva, Chacal e mesmo Paulo Leminsky, mostra que essa geração passou a ser melhor compreendida, que suas rebeldias foram deglutidas?


Creio que, a longo prazo, a rejeição provinciana de tudo o que não se conforma às convenções em voga tende a ser superada, e os bons poetas tendem a ser reconhecidos. De todo modo, os poetas ditos “marginais” eram muito diferentes uns dos outros. A marginalidade que tinham em comum era sobretudo uma marginalidade em relação ao circuito editorial. Pensando bem, o fato, observado pela Walnice Nogueira Galvão, de que praticamente nenhum livro de poemas é objeto de consumo comercial faz de praticamente toda poesia uma atividade relativamente marginal.

3 – Já há algum tempo a poesia que é praticada no Brasil não está sintonizada com nenhum movimento literário. Cada um faz a sua poesia em seu canto. Como leitor, você enxerga alguma característica marcante nesta produção? Seria ela mais lírica?

Não enxergo nenhuma única característica marcante. Pode ser que no futuro se enxergue. Hoje não é possível. Há de tudo. Penso que o resultado da experiência das vanguardas, independentemente das intenções delas, foi o de mostrar que não é possível a priori receitar as formas com que os bons poemas devem ser feitos. Um soneto pode ser mais criativo que um poema hologramático. É preciso julgar caso a caso. Os poetas contemporâneos não podem deixar de saber disso.

4 – A poesia é um gênero mais sofisticado que a prosa, que requer um entendimento mais elaborado do leitor. Você acredita que uma das razões de se ler pouca poesia seja pelo fato de ser pouco ministrada na escola? Poesia se aprende na escola?

Acho em princípio é possível ensinar a ler poesia na escola. A maior parte das pessoas é analfabeta, em relação à leitura de poesia. A leitura de um poema, mesmo quando efetuada em voz baixa ou interior, não se compara às demais experiências de leitura. Não se lê um poema como se lê uma notícia de jornal, uma bula de remédio, uma carta, um ensaio. Lido desses modos, um poema é uma chatice. A leitura de um poema, mesmo em voz baixa, mesmo “para dentro”, deve levar em conta a sua sonoridade. E ela deve ser progressiva e regressiva, prestando atenção a todos os elementos semânticos e sintáticos, formais e materiais, descritivos e alusivos de que o poema é composto. O bom leitor permite que o bom poema o transporte para uma temporalidade diferente da temporalidade cotidiana. Os professores devem ser preparados para ensinar essas coisas aos alunos.

5 – De repente um poeta como W.H.Auden se torna popular, ou quase, porque foi citado num filme como Quatro casamentos e um funeral. É válido este tipo de carona para se popularizar a poesia?

Sim. Por que não? Muita gente diz que passou a gostar de poesia a partir de uma experiência dessa natureza. Outros dizem que passaram a ler poesia depois de prestarem atenção a letras de canções. A partir dessas experiências, cada qual abre – ou não – o seu caminho pela poesia.

6 - A filosofia está na moda? Autores como Allain de Botton e Luc Ferry se tornaram best-sellers ao apresentar aspectos da filosofia numa mais acessível.

Não sei. A palavra “filosofia” quer dizer muitas coisas. Pensar, de maneira geral, sobre o sentido da vida, por exemplo, é chamado “filosofia”. Acho que esses autores talvez ajudem as pessoas a fazer a transição entre tal filosofia espontânea, prática, e a filosofia teórica.

7 - Parece que a filosofia – já houve essa acusação – está sendo usada como instrumento de autoajuda. Para se compreender o amor, o desamor e até angústias contumazes do ser. Você enxerga algo de ruim neste tipo de utilização?


O filósofo Boris Groys pensa que hoje só há lugar para esse tipo de filosofia, e não mais para a filosofia crítica (quando digo “filosofia crítica” não estou necessariamente me refindo à Escola de Franfurt, que é apenas uma espécie de filosofia crítica). Seria um desastre, se as coisas fossem como Groys diz, pois, do meu ponto de vista, a verdadeira filosofia teria deixado de existir. Penso, como Heidegger, que o sentido da filosofia não é tornar as coisas mais fáceis, mas mais difíceis.

Mas não creio que Groys tenha razão, e que hoje só haja lugar para a autoajuda. Pouco me importa que haja quem use a filosofia como autoajuda. Cada um que use como quiser os textos que estão no mundo. Por outro lado, reservo-me o direito de eventualmente criticar um ou outro desses usos. A mim interessa principalmente a filosofia crítica.

8 - Um filósofo e escritor como Nietzsche transformou-se num verdadeiro postulado pop – é citado por poetas, músicos etc. Suas ideias parecem encontrar uma forte ressonância em nossos tempos. Você saberia dizer o por que de tanto sucesso do bom Nietzsche?


São sem dúvida muitas as razões desse sucesso.

Primeiro, ele se tornou uma moda filosófica francesa, lançada por pensadores badalados como Deleuze e Foucault. Como tantas outras modas filosóficas francesas, importamos também essa.

Segundo, acho que uma das razões pelas quais essa moda “colou” é que algumas proposições de Nietzsche são tomadas precisamente como receitas de autoajuda.

Terceiro, Nietzsche é um grande escritor e poeta, e os seus textos são quase todos claros, em comparação com os textos dos filósofos sistemáticos.

Quarto, seu “vitalismo”, sua afirmação da vida, agrada exatamente a quem não tem a “paciência do conceito”: que é a maior parte da humanidade.

Quinto, ele soa paradoxal, iconoclástico e revolucionário.

Sexto, o seu “perspectivismo” corresponde ao relativismo dominante hoje.

Sétimo, ele não se importa de se contradizer e muda frequentemente de ponto de vista, de modo que se pode extrair praticamente qualquer coisa que se queira do pensamento dele.

Há outras razões, é claro, mas essas me são bem evidentes. Tome-se, por exemplo, a afirmação, que se encontra em “Além do bem e do mal”, de que “a falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele. [...] A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida”. A ideia de ter a vida como critério não é exatamente uma receita de autoajuda? E se trata de um texto claro, vitalista, paradoxal, iconoclástico, revolucionário, relativista, que defende a falsidade, logo, a autocontradição, como condição de vida.

Por falar em Nietzsche, acaba de ser publicada em português a obra monumental do Domenico Losurdo, “Nietzsche: o rebelde aristocrata”. Ela deve mexer um pouco com os nossos revolucionários nietzscheanos, pois Losurdo prova documentalmente algo que qualquer um que tenha lido o próprio Nietzsche, e não apenas os seus epígonos, deveria saber, mas não sabe: que ele foi “o mais reacionário dentre os pensadores”.


9 - Aliás, qual é o seu filósofo predileto? Por que?

O que mais gosto de ler é Platão, pela sua prosa maravilhosa. Na verdade, gosto de ler todos os grandes filósofos, mas penso que o maior é Kant. Ele levou às últimas consequências a razão crítica liberada pela filosofia moderna. Entre outras coisas, Kant fundamentou o princípio do direito como liberdade, instituiu a estética moderna e estabeleceu a autonomia da arte. Ninguém jamais o superou em agudeza analítica ou imaginação criativa.

10 - Costuma-se dizer que as décadas de 80 e 90 foram períodos consagrados ao Eu, enquanto os primeiros anos deste século foram marcados pelo consumo e mercado. Você acredita que neste contexto haja ainda espaço para utopias?


Pelo menos as utopias tradicionais perderam o sentido, independentemente de egoísmos ou consumismos. Depois de tantas experiências políticas frustrantes e desastrosas, que custaram milhões de vidas e imenso sofrimento, a ideia de transformar rápida e radicalmente o mundo já não encanta tanta gente. Isso não significa que o mundo não possa ser mudado. Não só ele pode ser mudado, mas tem mudado o tempo todo. Agora mesmo, nos Estados Unidos, conseguiu-se algo que parecia impossível, dada a organização e agressividade das forças reacionárias daquele país: a aprovação do plano de seguro social universal defendido por Obama. Isso é uma mudança para melhor dos Estados Unidos. Penso que, no lugar das utopias tradicionais, temos que garantir a possibilidade de um reformismo permanente.

11 - Afirma-se que nossa época seja marcada pelo conformismo, ditado pelo excesso de consumo e baixa discussão política. Seria essa uma das razões para explicar um momento cultural nomeado pela crítica como vazio e sem grandes desafios?


Tem-se sempre uma visão obscura e indefinida do presente, mas relativamente definida e clara do passado. Já aprendemos a reconhecer a genialidade de certas ideias, obras e pessoas do passado, mas não do presente, que, por isso, nos parece sem graça. Por exemplo, o final do século 19 – quando estavam vivos e produtivos gênios como Mallarmé, Cézanne, Husserl, Freud etc. – era, na época, considerado pelo filósofo austríaco Otto Weininger como “um tempo que não possuía mais nenhum grande artista, nenhum grande filósofo; tempo desprovido de originalidade”.

12 - De outro lado sempre é lembrada a década de 1980 como um período culturalmente rico. Você acredita que isso tenha ocorrido pela luta política contra a ditadura e portanto a cultura, nos tempos atuais, esteja meio sem alvo a ser contestado?

Durante a própria década de 80, ninguém a achava um período culturalmente rico. Ao contrário, ela era tida como a época do triunfo da ideologia yuppie, época absolutamente frívola e sem esperança.

13 - Você morou nos Estados Unidos durante sua infância (me corrija se falei errado). Queria que você comentasse um pouco desse período e se algo o marcou.


Vivi lá na adolescência. O melhor foi ter aprendido bem inglês e a literatura de língua inglesa, mas não me adaptei bem ao high school. Eu praticamente não tinha vida social com os colegas. Meu pai tinha uma grande biblioteca e eu gostava de ficar em casa sozinho, lendo. Mas alguns dos momentos mais marcantes que passei nos Estados Unidos se deram quando meu pai, (que foi um dos intelectuais que haviam fundado, na década de 1950, o Instituto Social de Estudos Superiores -- ISEB), recebia seus amigos brasileiros que passavam por Washington, entre os quais Hélio Jaguaribe, Celso Furtado e Rômulo Almeida. Todos eles moravam em diferentes cidades dos Estados Unidos, e de vez em quando todos se encontravam lá em casa. Para mim era uma festa. Eu era ouvinte entusiasmado das conversas deles.

14 - Você mantém alguma relação intelectual com a poesia americana da década de 1970 e 80?


Já li ou leio alguns poetas dessa época, como John Ashbery (que uma vez eu e Waly Salomão trouxemos ao Brasil, para participar de uma mesa com João Cabral e Joan Brossa, no MAM do Rio), Charles Bernstein, James Fenton, James Tate.

15 - Você mantém a produção de letras de música? O interesse por esse veículo artístico permanece?


Permanece. Mas gosto mais de escrever poesia para ser lida. Amo e admiro meus parceiros, mas gosto de escrever textos que sejam fins em si, sem estar ligados a música nenhuma. Os poemas são autotélicos, isto é, têm sua finalidade em si; já as letras são heterotélicas, isto é, têm sua finalidade noutra coisa, que é a canção.

16 - Dos seus companheiros de viagem, como letristas, na música brasileira, com quem melhor você se identifica: Cazuza ou Arnaldo Antunes?

Uma parte de mim se identifica com um e outra, com o outro. Gosto de ambos.

17 - Letra de música é poesia? Ou é apenas letra de música?

Letra de música é letra de música. Agora, nada impede que haja letras de música que, quando lidas, sejam poemas e, mesmo, grandes poemas, melhores do que a maior parte dos poemas feitos para serem lidos. Não nos esqueçamos de que os poemas líricos gregos eram letras de música. Hoje consideramos os poemas de Safo ou Teógnis obras primas. Ora, eles foram feitos como letras de música.

Mas as letras que servem para a leitura não são necessariamente melhores do que as que não servem para tanto. Uma boa letra de música é simplesmente uma letra que, junto com a sua melodia, constitui uma boa canção. Por outro lado, um poema bom para ser lido pode, ao ser musicado, tornar-se uma letra boa ou ruim. E pode ser uma letra ruim, mesmo que seja um poema bom.

18 - A pergunta que não quer calar: Caetano ou Chico?

Gosto muito de Chico, mas, para mim, Caetano é o maior de todos.


19 - Chico ou Aldir Blanc?


Chico. Mas algumas letras de Aldir, como “Incompatibilidade de gênios”, são geniais.

20 – Fala-se sempre de romance de uma geração. No seu caso, existe alguma letra de música de sua geração? Algo que você leia, ou ouça, e a flagre como um momento de seu tempo?

Sim. “Vapor barato”, do Waly Salomão. A música é do Macalé e a gravação que me arrepia é a da Gal Costa no Disco do show Fatal.

1.8.10

Friedrich Nietzsche: "O cristão comum"




116
O cristão comum. -- Se o cristianismo tivesse razão em suas teses acerca de um Deus vingador, da pecaminosidade universal, da predestinação e do perigo de uma danação eterna, seria um indício de imbecilidade e falta de caráter não se tornar padre, apóstolo ou eremita e trabalhar, com temor e tremor, unicamente pela própria salvação; pois seria absurdo perder assim o benefício eterno, em troca de comodidade temporal. Supondo que se creia realmente nessas coisas, o cristão comum é uma figura deplorável, um ser que não sabe contar até três, e que, justamente por sua incapacidade mental, não mereceria ser punido tão duramente quanto promete o cristianismo.



NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.